A instauração de regimes autoritários de direita, em que no processo de conquista ou conservação do poder se manifeste algum grau de reagrupamento de forças sociais ou até algum apoio que possa ser qualificado de popular, não é desconhecida em Portugal.
A primeira experiência nesse sentido é a do miguelismo, ou seja do período iniciado em 1828 em que o filho dilecto de D. Carlota Joaquina, retomando a actividade golpista que protagonizara no tempo de D. João VI (Vilafrancada, Abrilada) rompe os seus compromissos relativos à aceitação da Carta Constitucional concedida por D. Pedro IV em 1826 e se proclama rei absoluto. Há toda uma série de títulos da nossa então incipiente comunicação social cujas publicações preparam o golpe de 1828 e que procuram contribuir para a consolidação do regime, sendo conhecidos os seus temas e conhecendo-se também a forma como os liberais conservadores se foram, neste período, demarcando dos vintistas radicais. O regime, que foi apeado através duma guerra civil, excedeu-se nas prisões e regozijou-se com as execuções, sobretudo em punição dos liberais que no Porto e em Aveiro tentaram defender a Carta Constitucional. Os nomes do brigadeiro Teles Jordão e do Conde de Basto estão hoje esquecidos, a não ser dos historiadores, o que é pena: não é só a memória do fascismo que deveria ser frequentemente evocada.
No Constitucionalismo Monárquico e na I República houve vários períodos ditatoriais, no sentido de que o Parlamento permaneceu fechado enquanto o Governo legislava, ou de franco cerceamento das liberdades, como em parte dos anos do cabralismo, da ditadura de João Franco (para não esmiuçar a ditadura de Pimenta de Castro respaldada pelo Presidente Manuel de Arriaga), nenhum deles com grande apoio, e o processo totalmente diferente do Sidonismo, este com forte apoio popular, que acaba por visar mais longe, com a institucionalização como “República Nova”. A experiência desperta ainda hoje alguma curiosidade científica e a personalidade de Sidónio suscita um certo fascínio em académicoscomo suscitou na altura aos seus próximos. Sem qualificar Sidónio Pais de pré ou proto-fascista, apesar da sua abertura à representação orgânica, retenha-se a legitimação através de uma eleição presidencial por sufrágio directo em que é o único candidato, expediente que Carmona reeditará em 1928, e sobretudo um apoio inicial muito heterogéneo, envolvendo monárquicos, católicos, republicanos conservadores de várias tendências e até sindicatos, unidos contra o Partido Democrático, tendo falhado justamente na consolidação desse apoio num bloco. Acabou por um lado abandonado por alguns dos seus aliados republicanos, vindo também a deixar criar nos oficiais reaccionários a ideia de que seria necessário organizarem-se para o pós-Sidónio, tendo nesse ensejo os monárquicos tentado a restauração e perdido. Nos aderentes do 28 de Maio e do Estado Novo figuraram ainda tanto militares como civis que os investigadores não têm tido dificuldade em identificar como sidonistas.
A receptividade popular à ideia de um movimento como o de 28 de Maio de 1926 anteriormente ao seu desencadeamento estará talvez por estudar de forma aprofundada. Por muito que a Ditadura Nacional primeiro, e o Estado Novo, depois, justifiquem o movimento com a instabilidade, real, da I República, um“extraterrestre” que no início dos anos 1970 estudou os indicadores económicos de 1924 e 1925 e os considerou-os muito positivos, conclui que “o regime autoritário não se impôs em Portugal por estar iminente o colapso económico”. E de facto a historiografia mais recente tem assinalado que no movimento participaram inicialmente muitos republicanos conservadores progressivamente neutralizados por uma certa “táctica do salame”, e que na União Nacional se integraram muitas personalidades pelo menos locais, dos partidos republicanos. Salazar, com o seu manto de salvador financeiro, acabou por assumir a liderança deste bloco, obrigou as várias formações da área do regime a integrarem-se na União Nacional, e organizou a partir do poder a Legião Portuguesa e a Mocidade Portuguesa (depois de uma experiência mais ou menos autónoma com a Acção Escolar Vanguarda). Com o desaparecimento em 1932 de D. Manuel II a restauração monárquica ficou ainda mais afastada e de qualquer forma Salazar organizou as coisas para durar, e nunca terá concebido o regime como algo separado dele próprio. A ideologia corporativa e o aparelho repressivo sempre tiveram em conta algum grau de agitação social herdada da primeira república, mas quando o inimigo principal passou a ser o partido comunista a coerência interna desta construção foi-se reforçando.
O fascismo português teve características, umas semelhantes, outras diferentes dos regimes autoritários europeus da sua época, sendo notável a forma como seduziu muitos quadros, que vieram a desempenhar cargos nas estruturas políticas criadas, e estando por estudar, creio, como se conduziram, perante o endurecimento do regime, os republicanos conservadores que aceitaram integrá-lo, sendo as dissidências mais conhecidas as de jovens revolucionários de direita, designadamente jovens oficiais, que se foram desiludindo. A partir da II Guerra Mundial saem da Universidade novas gerações de quadros que estão nalguns casos radicalizados contra o regime mas cuja maioria mantém uma neutralidade pragmática propícia à gestão da sua carreira no quadro das novas perspectivas de desenvolvimento, sendo raro que vão integrar as fileiras da “Situação”, que não se rejuvenesce. O que não quer dizer que não tenham ficado em muitos espíritos a crédito de Salazar o ter recomposto as Finanças Públicas, o ter mantido o país fora da II Guerra Mundial, o na altura do começo da luta armada em Angola, ter organizado a intervenção para defesa dos colonos que, muitos, vinham de famílias “metropolitanas”, e, o que não é de somenos, o não ter o Presidente do Conselho de Ministros aproveitado o cargo para enriquecer.
A possibilidade de retorno do fascismo não se põe, evidentemente, sob a forma de desejo de reinstaurar a Constituição de 1933 ou de reanexar as colónias, mas é muito importante encontrar uma forma de lidar com estas memórias.
Quem se preocupa hoje com a possibilidade de regresso do fascismo deveria aliás tentar reconstituir as reacções contra a democracia, a princípio muito disfarçadas, que, através de uma multiplicidade de canais e protagonizadas por diversas organizações se manifestaram logo em 1974, os assaltos e incêndio de sedes do PCP e de outras entidades que ocorreram em 1975, a actividade da rede bombista que se prolongou por 1976. Ou seja, o fascismo regressou nessa altura, através de algumas personalidades na margem do regime deposto ou que então acordaram para a política, sem possibilidade de retomar o poder, mas tendo-o de facto influenciado, e percebeu que basicamente a atitude do poder perante as suas manifestações seria permissiva.
Neste contexto, quando muitos se interrogam se a extrema-direita ganhará força em Portugal, a minha resposta é: ela já cá está e os seus sucessos futuros não revestirão necessariamente a forma de votação num partido de extrema-direita a constituir de raiz e que iria elegendo deputados. A penetração tem sido e será mais difusa e tal como em 1974 e actualmente poderá utilizar uma pluralidade de veículos. Aliás julgo poder dizer que houve círculos organizados sintonizados com o PSD dos anos da “troika” que Pedro Passos Coelho não quis isolar, sem que me passe pela cabeça compará-lo a Salazar, mesmo em termos de política económica: Salazar foi convivendo a partir da II Guerra Mundial com um processo de reforço do peso do Estado que pode não ter desejado mas nunca quis reverter.
Recentemente Adelino Fortunato publicou um excelente artigo sobre a extrema – direita em que concluía “O combate à extrema-direita só pode fazer-se anulando as condições que a tornaram atraente”., e dava exemplos. No entanto as ideias veiculadas pela extrema-direita muitas vezes exploram ódios, medos e invejas, e carecem de racionalidade e nem sempre se percebem as condições que favorecem a sua circulação.
Os ciganos que não trabalham e vivem do RSI, que valeu em Loures um relativo sucesso eleitoral a André Ventura, os africanos que deveriam voltar para a terra deles mesmo que tenham nascido em Portugal, o perigo muçulmano, os brasucas que vêm tirar os empregos e pressionar os salários a permanecerem baixos, estão essencialmente no âmbito do irracional e tendem sobretudo a surgir nos on lines ou nas conversas correntes. Os políticos que se alheam dos eleitores por causa do sistema eleitoral, os deputados que são demasiado numerosos e que têm vantagens imorais, os funcionários públicos que ganham mais do que os privados ou só fazem greves, aparecem associadas ao debate político corrente mesmo sem base factual. A denúncia das escolas e dos professores que fazem política ainda cá não chegou. Entretanto o preço dos combustíveis está alto, há muitos impostos e taxas, mas já estamos habituados, o povo é sereno …ou não ?
O problema talvez seja termos um défice de debate político. “A minha política é o trabalho” terá sido talvez o maior condicionamento que o fascismo nos infligiu. Nesse sentido, o fascismo não precisa de regressar, ficou dentro de nós.
Ver, por exemplo, José Tengarrinha, Nova História da Imprensa Portuguesa, das Origens a 1965.
Ver, por exemplo, Rocha Martins, Os Românticos Antepassados de Eça de Queiroz, e mais centrado no clima persecutório em Lisboa e Setúbal, o recente livro de Pedro O’ Neill Teixeira, Amigos da Dinamarca.
Franco Nogueira, Salazar, Vol I.
Ver “Sidónio Pais, o Presidente-Rei foi morto há em 100 anos”, peça de Manuel Carlos Silva no Diário de Notícias, de 14.12.2018, com declarações de António Telo, Ana Paula Pires e João Medina.
Caso de Rocha Martins, como mostra o Sidónio Pais, Ídolo e Mártir da República deste monárquico liberal.
Que Spínola tentará reproduzir em 1974.
J.M.Tavares Castilho, Os Deputados da Assembleia Nacional 1935-1974, e Os Procuradores da Câmara Corporativa 1935-1974.
Philippe C. Schmitter, Portugal, do Autoritarismo à Democracia.
. Ver por todos, Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A Arte de fazer durar.
Miguel Carvalho, Quando Portugal Ardeu.
Adelino Fortunato, “A ascensão da extrema direita”, Públicode 13.12.2018.