As reflexões são milenares e estão gravadas nos mais diferentes suportes: na Pedra, no Papiro, no Papel. “O homem é o lobo do homem”, escrevia Thomas Hobbes no seu Leviatã. Hobbes distingue de forma clara, antecipando em três séculos a distinção essencial entre Natureza e Cultura (no sentido civilizacional) que subjaz à emergência da Antropologia.
Hobbes, no Leviatã, apresenta-nos um Homem cuja Natureza é intrinsecamente egoísta, competitiva, destituída de valores morais e orientada apenas para a busca da riqueza, da segurança e da glória: do Poder, em suma. Cada homem prossegue os seus desideratos de forma individualizada, sem regras, e sem qualquer interesse em entregar valor à comunidade a que pertence ou à sociedade onde vive. A moral e a justiça são totalmente irrelevantes no estado “natural”, onde apenas a “guerra” faz sentido como forma de dirimir conflitos. A busca da indispensável paz justifica o recurso a todos os meios oferecidos pela guerra para ser conseguida.
A paz pode ser obtida através de um contrato social: tal “contrato” traduz-se na renúncia à capacidade de atacar o outro desde que este, por seu turno, aceite desistir do seu direito de atacar o primeiro. A razão, isto é a Cultura, a Civilização, aumentam as possibilidades de sobrevivência de todos. Neste sentido a essência da soberania traduz-se apenas no poder suficiente para manter a paz, dispondo dos meios coercivos à manutenção desta através da punição daqueles que a quebrarem. Quando o Leviatã – o soberano – existe, a justiça faz sentido porque o Estado dispõe dos meios adequados e indispensáveis à sua implementação. Passa a existir um motivo para ser justo fundado na punição da injustiça por uma entidade dotada de meios para punir aqueles que o não forem.
Esta doutrina, desenvolvida por John Locke e consagrada por Rousseau, subsume o fundamento político e social do Estado tal como o conhecemos. Ou melhor, tal como o conhecíamos. O contrato social contém os ingredientes em que as forças em confronto aceitam auto-limitar os seus direitos em prol da paz social. O desenvolvimento deste conceito foi o cadinho onde germinaram ideias como a do controlo da política sobre a economia, sustentáculo do modelo capitalista de organização social em que nascemos e crescemos – onde o dinheiro (capital) desempenha o papel de “pai”, e o trabalho a função de “mãe”, na qual durante meses germinam as mais-valias que constituem o crescimento e a riqueza, reproduzindo, sem guerra, as ambições e a essência do Homem no estado de Natureza, maquilhado e mediado por esta camada “Civilizacional” e contido pelo Poder cedido ao Estado.
O retrocesso civilizacional a que assistimos actualmente, caracterizado pela denúncia unilateral do “contrato social”, vem mudar de forma substantiva as regras do jogo. O dinheiro (capital) absorveu para si a função anteriormente desempenhada pelo trabalho, constituindo-se como “pai” e “mãe” do crescimento e da riqueza. A proliferação do capital puramente financeiro, abstracto, tornou o Estado aparentemente dispensável e desvalorizou definitivamente o trabalho.
O palco onde antes se desenrolava o processo de criação de valor, através do encontro do capital com o trabalho, designado por Economia, adquiriu uma nova direcção de actores, a Finança calculada através de algoritmos, onde os protagonistas – os “políticos” – são apenas reféns de decisões que na verdade deixaram de estar na sua esfera de competências. Os políticos do Poder são, de facto, colegas do elenco dos Marretas e tal como estes são controlados por uma mão, estrategicamente colocada na sua “anatomia”, que dita indelevelmente as “supostas” decisões que aparentemente continuam a tomar. Com a Política, e através desta a Economia, controladas de forma desregrada pelos sectores financeiros, o retorno ao Homem Natural de Hobbes e, como tal, a uma variante avançada de barbárie, torna-se inevitável.
É este retrocesso que muitos séculos de Civilização clamam que seja travado!