A polémica do financiamento dos partidos por entidades públicas cessou quase tão rapidamente como começou, o que sugere que houve uma composição de interesses entre todos os beneficiários. Não estando ao meu alcance o nível de aprofundamento conseguido por João Vasconcelos – Costa, no seu artigo de 15 de Janeiro de 2018 (link para a publicação no Jornal Tornado – O financiamento dos partidos) tentarei revisitar a questão quanto a dois ângulos específicos: existência de limites definidos, transparência.
Pagamento de remunerações
As entidades públicas financiam os partidos através das remunerações dos titulares de cargos políticos – membros do governo da república e regionais e dos executivos autárquicos – presidentes e membros com pelouros atribuídos, deputados aos vários órgãos, membros dos gabinetes de apoio livremente escolhidos. É muita gente, e não estou sequer a falar dos cargos de estrutura da administração pública que acabem por ser preenchidos por pessoal mais ou menos ligado aos aparelhos partidários.
Como já escrevi em estudo ainda inédito, em Portugal, onde existe já em larga escala uma profissionalização dos titulares de cargos políticos, fazem – se sentir tanto movimentos no sentido do reforço dessa profissionalização, pedindo a exclusividade do exercício do cargo de deputado ou o alargamento das incompatibilidades com este, como no da denúncia desta, uma vez que determinaria a formação de uma “classe política” com interesses próprios e desligada dos cidadãos, e, também, com custos incomportáveis para o erário público.
É importante contudo saber que no constitucionalismo monárquico vigorava já, nos termos da Carta Constitucional o pagamento de um subsídio durante o funcionamento das sessões, que foi posto em causa por um Decreto de 15 de Setembro de 1892 que alargou à Câmara dos Deputados o princípio da gratuitidade no exercício da Câmara dos Pares “porque assim o aconselham os exemplos de várias nações adiantadas na carreira da civilização e imperiosamente o exigem as circunstâncias angustiosas do país” e porque “a hora é de sacrifícios para todos; e de cima é que devem partir os exemplos para serem realmente profícuos à escala nacional”, determinando que “os deputados às cortes gerais da nação portuguesa exercem sem remuneração o exercício das respectivas funções” , que a I República assegurou também o pagamento de subsídio durante o funcionamento das sessões do Congresso que ocupavam, é certo, uma parte substancial do ano, que o Estado Novo o cingia igualmente ao funcionamento efectivo da Assembleia Nacional e que só no actual regime democrático constitucional os deputados gozam de um tratamento que os equipara em termos de estatuto remuneratório aos trabalhadores por conta de outrem.
É certo que assim se permite em teoria que a base de recrutamento dos deputados não se cinja, como no século XIX, a proprietários fundiários, profissionais liberais e funcionários públicos, mas é duvidoso que o parlamento tenha passado a reflectir mais adequadamente a composição da população.
O facto é que por muito que se procure atrair para as listas candidatos já conhecidos nas suas carreiras profissionais, as circunstâncias têm levado a preencher o parlamento com deputados que frequentemente exercem pela primeira vez um cargo público de âmbito nacional, e, a colocar nos gabinetes de apoio elementos que ficaram sem colocação noutro lado, e até por vezes ex-deputados que não conseguiram a reeleição.
A passagem a secretário de estado é vista como uma promoção, um tal Feliciano Barreiras Duarte, agora falado por causa das suas não visitas a Berkeley, teve essa experiência, mas se olharmos para a paisagem política nacional dos anos mais recentes é o ser presidente de câmara e até o ser capaz de mudar de município para um município tão ou mais importante, que constitui o topo da carreira política, inclusive para ex-membros do Governo (Santana Lopes, Basílio Horta, Álvaro Amaro, e, nos fracassados, Fernando Seara), salvo casos de reconhecimento, de compensação política ou de exílio dourado para opositores internos, que revestem a forma de indicação para deputado europeu.
A concentração do pessoal político no Parlamento e a fraca dimensão das estruturas partidárias centrais tem tornado, como tive ocasião de perceber quando fui dirigente sindical, os grupos parlamentares uma espécie de interface entre os partidos e os grupos de interesse, aliás uma vez tive ocasião de pedir a um dirigente do PSD, também deputado num parlamento em dissolução e previsível ministro no novo ciclo político, que o encontro que lhe tínhamos solicitado tivesse lugar na sede da Rua de S. Caetano à Lapa e não no seu gabinete de deputado. Pedido deferido com um sorriso, mas se não se tratasse de um ex-colega de curso e de docência, imagino que seria ignorado.
No Parlamento Europeu é que a distinção de funções é mais marcada, sendo punida a afectação de pessoal dos gabinetes de apoio parlamentar ao exercício de funções nos aparelhos partidários nacionais, como Marine Le Pen está a aprender à sua custa.
Esta vertente de apoio está bem definida e legislada mas infelizmente não o está o apoio aos “parlamentos municipais” em que há pouco tempo houve um mini-escândalo por a Assembleia Municipal de Lisboa se ter permitido fixar uma elevada dotação para a contratação, a recibos verdes, de assessores para os diferentes “grupos parlamentares”. Mais uns a quem saiu a taluda, e agora percebo por que razão o presidente cessante da Junta de Freguesia do Parque das Nações acordou apoiar a lista do PS para a freguesia a troco de vir a ser deputado municipal “independente eleito pelo PS, com gabinete próprio” .
Subvenções
Das ajudas financeiras públicas através do “pagamento de subvenção aos partidos parlamentares proporcional ao número de votos” e “subvenção para campanhas eleitorais, em reembolso de despesas, com um máximo conforme o tipo de eleições” já falou aqui no Jornal Tornado João Vasconcelos-Costa cujas conclusões no essencial subscrevo.
Pergunto-me no entanto se não haveria alternativas, por exemplo aumentar o valor destas subvenções e privatizar o funcionamento da máquina, retirando o estatuto de quase – funcionário aos eleitos e aos membros dos seus gabinetes de apoio: cada partido que os remunerasse de acordo com contrato individual, criasse o seu próprio fundo de pensões, etc.
Aparentemente há pelo menos um partido – o PCP – que, na esteira da prática dos então grande partidos comunistas da Europa Ocidental por altura da restauração da democracia parlamentar em Portugal, pratica uma gestão muito própria, obtendo dos seus eleitos a parte dos valores por eles recebidos que excedem o que ganhavam na sua actividade original, ´dando origem a “receitas oriundas do grupo parlamentar”, o que julgo que também tem sido aplicado aos seus funcionários eleitos presidentes de câmara. Ao mesmo tempo que evita que os seus eleitos se “aburguesem”, tira proveito financeiro da situação .
Entretanto foi recentemente divulgado que fez contratar autarcas seus que perderam eleições e não ficaram com pelouros, como prestadores de serviços em municípios em que ainda detêm a maioria, em vez de apoiar financeiramente, com os seus próprios recursos, uma genuína reinserção profissional daqueles . Não será o PCP o único a fazê-lo, o PS também tem casos de “reemprego” no município de Lisboa, mas não deixa de ser criticável e afecta a imagem da sua gestão nas autarquias que ainda detém.
Não insistirei contudo neste cenário de “privatização”, porque tive ocasião de pôr a hipótese a um jovem deputado da direita liberal e pareceu-me que este até tinha perdido a cor.
“Restituição” do IVA
Os reembolsos e restituições de impostos foram durante muito tempo tratados contabilisticamente como despesa pública, orçamentando-se uma dotação para o efeito e contabilizando-se a execução como despesa nos termos gerais.
Com a entrada em funcionamento a partir de 1986 do IVA e a partir de 1989 do IRS e do IRC que implicam acertos periódicos, criaram-se dois serviços (SAIVA e SAIR) que, dotados de tesouraria própria, geriam e contabilizavam os fundos à margem do OE e do Tesouro, violando regras básicas de gestão. A Lei de Enquadramento Orçamental aprovada em 2001 veio permitir a orçamentação líquida destes e outros impostos, isto é, de receita abatida de reembolsos e restituições, com dois grandes inconvenientes:
- a permissão da manipulação das datas dos reembolsos, designadamente de IVA, devidos perto do fim do ano, diferidos, por cautela, para o ano seguinte, para não pesarem no défice orçamental do ano em curso;
- a criação de um incentivo à prestação de apoios financeiros sob a forma de restituição de impostos, por não ser necessário definir limites e por não ficar evidenciado na Conta Geral do Estado quanto foi “restituído”.
Tal como quando um Ministro e um Secretário de Estado, ambos da Cultura, certos da impossibilidade de aumento da dotação para as despesas do sector, vieram em determinado ano propor que os bilhetes de cinema pudessem ser abatidos no IRS. Fácil e “barato”.
O fiscalista Xavier de Basto num recente artigo publicado a propósito da revisão da lei do financiamento partidário veio a esclarecer:
… Em suma, quem não paga IVA não tem direito à dedução, a não ser que opere no mercado externo.
Aconteceu, porém, que o Estado português, à margem da directiva comunitária e fora da normativa nacional do IVA, em leis especiais, entendeu dever subsidiar algumas entidades, atribuindo-lhes subvenções iguais a parte do IVA que tenham suportado nas suas aquisições. Os beneficiados foram as IPSS, a Igreja Católica e os partidos políticos.
Se quisermos ser rigorosos, não se trata de devolver parte do IVA suportado; isso seria violar a disciplina comunitária. Trata-se antes de devolver um montante igual a parte do IVA suportado, ou seja, atribuir um benefício assim calculado. Em vez de lhes pagar a renda de casa, ou a energia eléctrica consumida, entendeu-se aferir o montante do subsídio através do IVA suportado por essas instituições em alguns tipos de despesas.
Como é evidente, seguindo a disciplina do IVA comunitário, a restituição ou devolução seria… zero, porque tanto a Igreja, como as IPSS, como os partidos políticos estão isentos de IVA.”
Um financiamento sob o falso pretexto de restituição, cujo limite não é quantificado à partida e que só é contabilizável com apuramento específico, é criticável, mas os partidos entenderam mantê-lo.
Fiscalização
Queixam-se entretanto os partidos da fiscalização incómoda e intrusiva da Autoridade Tributária e Aduaneira e da entidade de fiscalização de contas que analisa estas para efeitos de sancionamento pelo Tribunal Constitucional.
A fiscalização é inevitável para evitar que a lei seja torneada. A proibição do financiamento dos partidos pelas empresas reduz a probabilidade de que estas sejam extorquidas, quer em benefício da actividade partidária, quer em benefício de políticos que peçam ajudas para os seus partidos e as apliquem em proveito próprio. Parece-me de manter o máximo rigor neste domínio.
João Vasconcelos – Costa, artigo de 15 de Janeiro de 2018 (“Financiamento partidário”) no Jornal Tornado.
Nuno Ivo Gonçalves, Estudo com o título “A profissionalização dos deputados nos últimos anos do Constitucionalismo Monárquico e nos primeiros anos da República”, Janeiro de 2014, ainda inédito.
Nuno Ivo Gonçalves, idem.
Declaração de interesses: pago IMI consignado ao Município de Lisboa.
Num ou noutro caso os interessados não levam até ao fim o cumprimento da orientação traçada e requerem ao menos as pensões e subvenções a que têm direito pelo exercício de uma actividade de que não usufruíram na altura integralmente a remuneração correspondente. É humanamente compreensivel.
Correio da Manhã, de 28 de Fevereiro de 2018.
Declaração de interesses: pago também IMI consignado ao Município do Seixal, que fez contratações destas.
José Xavier de Basto, “A festa de Natal da ignorância“, Público, 4 de Janeiro de 2018.