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João de Sousa

Domingo, Dezembro 22, 2024

O fracasso do jornalismo

José Sócrates
José Sócrates
Antigo Primeiro Ministro.

A nomeação de Sérgio Moro como Ministro da Justiça do Brasil é exatamente o que parece – a vitória da impostura, do fingimento, da hipocrisia. Vitória do lawfare – a utilização do sistema judicial para perseguir e eliminar o inimigo político. Vitória da subtileza – o novo golpe de mão é limpo e virtuoso, não mais precisa de tanques ou de força bruta, basta-lhes, como vimos, meia dúzia de ativistas políticos disfarçados de juízes. Mas também derrota da justiça, não uma qualquer derrota mas um golpe profundo: afinal, a legitimidade de todo o conjunto reside na imparcialidade do juiz que agora é atingida.  Como recuperar, agora que a mais obscena instrumentalização política do sistema judicial foi despudoradamente exibida perante a audiência? Como voltar a confiar que, ali, acima das partes, temos um árbitro que trata todos por igual? Como regressar ao discurso da confiança institucional, quando fica sem resposta a suspeita de um gigantesca manipulação eleitoral construída na base de uma atuação interessada, parcial e ilegítima das instituições judiciais?

A política e a justiça brasileiras tem muito em que pensar e o episódio não vai desaparecer. Mas talvez não seja injusto lembrar o que ele significa também como fracasso do jornalismo: o fracasso do silêncio, senão mesmo da cumplicidade, com tudo o que se passou. Na verdade, o jornalismo engoliu tudo – as ações parciais, os vazamentos ilegais e seletivos, a celeridade do julgamento, a vacuidade das provas, a prisão sem sentença transitada em julgado. O jornalismo calou-se quando Sérgio Moro validou e divulgou uma escuta ilegal entre Dilma e Lula; calou-se quando Sérgio Moro decidiu interrompeu as férias para impedir o cumprimento do alvará de soltura de Lula; calou-se quando o sistema judicial decidiu ignorar a determinação, de cumprimento obrigatório, do comité de direitos humanos da ONU para que Lula fosse autorizado a candidatar-se. Sem exagero, o jornalismo tornou-se cúmplice da construção da narrativa política de Sérgio Moro como herói popular e do PT como partido criminoso. Não, não foi só a política, não foi só a justiça – foi também o jornalismo.

É muito interessante ler a entrevista que a antiga assessora de imprensa da operação Lava Jato concedeu ao “The Intercept Brasil”. Diz ela:

Era tanto escândalo, um atrás do outro que as pessoas (jornalistas) não pensavam direito, (…) o facto é que as facilidades fizeram com que a imprensa “ comprasse” a Lava Jato quase que imediatamente. Denúncias do Ministério Público eram publicadas em reportagens quase na integra, assim como os inquéritos da policia e as decisões do Moro.

O caso da cunhada do Vaccari (ex tesoureiro do PT, João Vaccari) foi bem significativo . Os jornalistas foram na onda do Ministério Público Federal e da Policia Federal. Todo o mundo divulgou a prisão, mas ela foi confundida com outra pessoa. Foi um erro da polícia. Quando perceberam o erro, Inês já era morta”.

A entrevista soa a ajuste de contas – consigo própria. Seja como for, o testemunho tem a virtude de expor em público a promiscua relação do jornalismo com o mundo, mais propriamente um sub-mundo, da justiça – sem sentido critico, sem preocupação com os abusos, sem imparcialidade, sem dar sequer ouvidos à outra parte. Valeu tudo em nome do “bem maior”, clássico estratagema dos cínicos para esconder o seu próprio interesse. Agora, depois de tudo o que vimos acontecer, o juiz insiste na insuportável e traiçoeira retórica de que aceitou o convite em nome do combate à corrupção, fingindo que não percebe que o jogo virou: o que está sob suspeita é a sua própria  integridade e a sua própria corrupção – a de usar, de forma interessada e parcial, o sistema judicial a que pertencia, com a intenção de tirar adversários políticos do caminho e poder beneficiar pessoalmente do cargo de ministro, com o qual, afinal, sempre sonhou. O jornalismo “chapa branca”, como os brasileiros gostam de dizer, aprende, de forma especialmente dura, uma lição de vida: o seu dever é fiscalizar todo o poder, sem apreciações subjetivas de qual seja o bom e o mau. Na verdade há apenas poder, que vai até onde o deixam ir. A política e a justiça brasileira tem muito em que pensar. O jornalismo também.

 

Primeira publicação no Jornal de Notícias Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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