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João de Sousa

Domingo, Novembro 24, 2024

O futebol avisou e você continua achando que é só um jogo

Provavelmente você já ouviu ou mesmo falou o jargão: o futebol é o espelho da nossa sociedade. Seja qual for a sua metáfora favorita, todos nós entendemos de alguma forma nossa realidade por meio do esporte bretão.

Escrever sempre foi um exercício de pensamento que me trazia um alívio para inquietações ou mesmo uma excitação por novas ideias. Em 2019, essa atividade intelectual tem me trazido angústias e ansiedades que só rivalizam com os boletos do fim do mês. A questão que me coloquei é: por que refletir sobre o futebol tem sido tão difícil quanto pensar na conjuntura brasileira?

Torcedor após o jogo do Brasil contra a Alemanha pela semifinal da Copa do Mundo, 08 de Julho 2014 (Foto: Bruno Domingos/Mowa Press)

A resposta que encontrei até agora é simples e nada inovadora. Apesar de ter uma lógica interna própria, o futebol é também uma janela privilegiada para entendermos a sociedade. O que eu chamo atenção aqui é que os sintomas da doença grave que o país atravessa já estavam se manifestando de maneira latente no universo do esporte mais popular do mundo.

Gostaria de maneira sucinta, elencar algumas pistas dessa percepção que faz do futebol – dentre outras cositas más – um termômetro do que rola no Brasil:

Racismo – Caso Aranha, Arouca e Tchê Tchê

Ao contrário do que diz o mito da democracia racial, o futebol revelou diversos episódios de manifestações racistas de torcedores, como o caso Aranha (2014) e Tchê Tchê (2016). E, pasmem, até mesmo racismo praticado por um árbitro, como no caso do meio-campista Arouca. Longe de superarmos a discriminação e desigualdade, o que vimos no Brasil foi o crescimento do genocídio de pretos pobres, em paralelo à polarização política que colocou uma pauta legítima, acordada entre os órgãos competentes internacionais, como um instrumento eleitoral que enfraquece as conquistas sociais e civis para os negros.

Intolerância – Torcida Única

A violência entre torcidas organizadas tem sido o argumento central para uma série de “modernizações” que os estádios vem atravessando. Como resposta a uma análise, no mínimo imprecisa, das brigas entre torcidas, os clássicos paulistas exibem uma ridícula arquibancada uniforme, sem visitantes nas arquibancadas. Este é um dos sintomas mais evidentes da nossa decrepitude. Muito além da incompetência do Estado, trata-se do nosso fracasso enquanto sociedade: a miséria civilizatória que é não conseguir conviver com o outro, o diferente.

Polícia escolta torcedores do Corinthians antes do clássico contra o Palmeiras 2015 antes da implementação da torcida única (Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo)

Machismo – Assédio

É sabido que, ao longo da história brasileira, os picos nas estatísticas de violência contra a mulher acompanham ondas de empoderamento feminino. Se existe um uso adequado para a palavra reacionário, este é o caso. A pesquisadora Maria Rita Kehl apresenta os crescentes casos de violência doméstica com a maior participação da mulher no mercado de trabalho, “ameaçando” a hegemonia do pai de família. Em outra fase, mais recente, com a primavera feminista, somada à “Lei Maria da Penha”, a masculinidade frágil – e tóxica, para usar a expressão da moda – tem reagido com muita violência ao empoderamento feminino. E em um lugar dominado pelos homens como é o futebol, a reação conservadora é latente. As vítimas? Toda mulher que se “arrisca” conviver nesse ambiente, seja na arbitragem ou na imprensa. #DeixaElaTrabalhar se tornou uma rara manifestação coletiva das jornalistas que sofrem com o assédio, ao mesmo tempo em que é criado um Ministério das Mulheres – que, ao contrário do que o nome supõe, é uma pasta que atende à wishlist do que machismo estabelece como uma mulher deve ser.

Espetáculo e Protagonização da Justiça – STJD

Se vemos com espanto no Brasil o circo jurídico-midiático, à imagem do modelo dos EUA, em que prisões performáticas viram destaque na programação da TV e onde as regras do jogo democrático estão cada vez mais flexíveis, parciais e ao gosto dos donos do poder, como diria o professor Raymundo Faoro, é porque, dentre outros motivos, normalizamos esse expediente para algo tão caro para nós: o futebol.

Podemos resgatar a trama de corrupção do Campeonato Brasileiro de 2005, onde a justiça desportiva se tornou protagonista da competição. Ou, então, o famoso tapetão do Fluminense, e, ainda depois, o caso Héverton, que, após causar o rebaixamento da Portuguesa, deflagrou uma crise profunda na Lusa. Não o bastante, a implementação do VAR tal qual tem sido praticada em solo brasileiro produz mais que polêmicas: é a elevação do papel da arbitragem como protagonista da partida. Ao invés de um mediador de conflitos e disputas em campo, o árbitro se tornou um agente da discórdia e um ator do jogo capaz de definir partidas, títulos e rebaixamentos.

Torcedor da Lusa se cobre com a bandeira do clube (Foto: Fábio Soares/Futebol de Campo)

Alienação – Depredação da Cidadania

Recentemente, um torcedor do Flamengo, professor universitário, foi impedido de entrar no estádio pois estava usando uma camisa Flamengo Antifascista. Sabemos que é uma orientação geral da FIFA a inibição de manifestações políticas nos estádios, seja por torcedores ou atletas, correndo riscos de punição, como multa ou mesmo suspensão. No entanto, chama atenção que certas manifestações que são taxadas como ideológicas – ou de apoio a certos partidos ou políticos – sejam criminalizadas. Ora, ser contra o fascismo é um ponto de vista ou deveria ser um consenso em um Estado democrático? Estender uma faixa “ditadura nunca mais” não deveria ser motivo de orgulho para nossa arquibancada? Ou mesmo ser uma iniciativa a ser incentivada por todos? Que sociedade civilizada que proíbe dizer “tortura nunca mais”? É a sociedade que nega sua própria história, subverte saberes elementares e permite que torturadores e assassinos sejam homenageados por parlamentares e até pelo presidente da República.

Futebol e sociedade, como entender essa relação?

Certa vez, um holandês chamado Johan Cruyff colocou no papel uma ideia que vinha sendo colocada em prática no futebol europeu da década de 1970. O futebol total é um conceito de jogo em que todos atletas participam de maneira dinâmica no ataque, com a bola nos pés, ou na defesa, sem a bola, todos marcando.

Para as ciências do esporte, sem engano, a ideia de que o futebol é um fenômeno total é um banquete para interpretações e análises que extrapolam as quatro linhas. Outrora, pela tradição marxista, o futebol era chamado de “ópio do povo”, o que pode confirmar em diversos aspectos catárticos do jogo, e, ao mesmo tempo, facilmente refutado pelas inúmeras manifestações “subversivas” do status quo, em geral, identificadas em momentos em que pesa censura e repressão na sociedade civil.

A partir da leitura clássica de Roberto DaMatta que entende o futebol como uma expressão dos dramas de sociedade, é estabelecida uma espécie de senso comum dos moderados de que o futebol é um espelho da sociedade. Embora seja importante valorizar os esforços dos analistas em fomentar a tabelinha sociedade & futebol, a expressão acaba sendo mais uma forte frase de efeito, pela falta de cuidado habitual que temos com a nossa rica língua portuguesa.

Como bem lembrou o professor Flávio de Campos em uma das nossas reuniões sobre minha pesquisa de mestrado, o espelho reflete uma imagem invertida. Pois bem: será que o futebol distorce valores, comportamentos e crenças da sociedade? É preciso pensar caso a caso.

Outro ponto de vista dos estudos sobre o futebol é a sua dimensão cultural, linha de pesquisa que reverbera um certo ethos dos trabalhos recentes que reverberam anseios identitários e reflexões sobre temas clássicos, como, por exemplo, o futebol como elemento forjador da nossa identidade nacional.

Dentre tantas outras abordagem a respeito do futebol, ainda há uma outra que é tão antiga quanto moderna. Certamente você já ouviu, especialmente dos próprios atores do jogo, a expressão “o futebol é uma linguagem universal”. Para os atletas, não importa se você joga Premiere League, Clausura argentino ou a segunda divisão do campeonato carioca: todos conseguem se entender, o futebol é universal.

Essa ideia é muito questionável, você já deve estar pensando. Claro, o mundo globalizado asseverou desigualdades, ao contrário do que sustenta os otimistas defensores de um suposto capitalismo moderno. Contudo, a ideia de futebol como linguagem é vasta. Já reparou como deciframos e explicamos nosso cotidiano com o repertório do futebol? Veja alguns exemplos: “você ficou pra escanteio”, “cara de gol contra”, “tomar um chapéu”, dentre outras. E de outra maneira, no caminho oposto, o futebol se apropriou de outros repertórios, em especial, índices da sociedade industrial belicosa: “matador”, “arqueiro”, “linha de passe”, “contra-ataque”, etc.

E é justamente observar o futebol como linguagem que nos permite identificar outros sintomas da nossa recaída enquanto sociedade democrática. Poderia citar os gritos de “bicha!” que a torcida grita quando o goleiro adversário bate o tiro de meta. Mas há um feixe que pode nos ajudar entender esse complexo embate sobre ideias diferentes sobre o que é o futebol: de um lado, aqueles que combatem o chamado “futebol moderno”, e, de outro, os entusiastas da ‘arenização’, um dos símbolos da modernização aclamada pela mídia de massa.

Esse debate pode ser encontrado em diversos textos aqui no Ludopédio, e eu mesmo já trouxe à tona sobre outra perspectiva, tomando como objeto sua memeficação Raiz x Nutella, que, obviamente, se não distorce, revela suas contradições. Enquanto os setores mais progressistas questionam as mudanças no futebol, quase numa tentativa de encontrar um passado idílico, ao mesmo tempo, cobram a superação de valores excludentes desse futebol do século XX.

Certo é que esse “resgate” tem um viés polissêmico. Tanto quanto as modernizações do futebol. E mais certo ainda – e trágico – é que o futebol já nos avisou que não estamos praticando com sucesso o exercício elementar da democracia: o debate. E enquanto abrimos mão de certos princípios pela conveniência conjectural, aprofundamos a falta da habilidade em discordar de opiniões, acolher a divergência e compartilhar interesses comuns. E seguimos achando que o futebol é só um jogo.


por Marco Lourenço, Pesquisador de História do Futebol e um dos editores do Ludopédio | Texto original em português do Brasil

Exclusivo Editorial PV / Tornado

Fonte: Ludopédio


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