Quinzenal
Director

Independente
João de Sousa

Sexta-feira, Janeiro 31, 2025

O Governo das Universidades e o RJIES

Nuno Ivo Gonçalves
Nuno Ivo Gonçalves
Economista, Mestre em Administração e Políticas Públicas, Doutor em Sociologia Política. Exerceu actividade em Gestão Pública, Recuperação de Empresas, Auditoria e Fiscalização e foi docente no ISE e no ISG. Investiga em História Contemporânea.

O governo das universidades seria regulado por uma lei de autonomia que consagrava a eleição do Reitor e a existência de uma Assembleia da Universidade e de um Senado com paridade entre representantes de docentes e de alunos, princípio que se manteria até ao RJIES proposto em 2007 por Mariano Gago.

  1. Experiências de gestão (mais ou menos) democrática

A nossa Constituição consagra, desde a revisão de 1982, uma ideia muito antiga e talvez ambígua – a de autonomia universitária – e o direito dos professores e alunos a participar na gestão democrática das escolas, nos termos da lei (cfr. Artigo 76º, nº 2, e Artigo 77º, nº 1).

Sottomayor Cardia

A autonomia universitária como vem sendo entendida tem-me parecido sobretudo uma abstenção do poder quanto a fazer aquilo que lhe possa criar problemas, inibindo-se até de definir por sua iniciativa objectivos que as universidades possam assumir através da celebração de contratos programa.

A gestão democrática das escolas, que aliás se aplica a outros níveis de ensino, irrompeu espontaneamente após a revolução de Abril, traduzindo-se generalizadamente na eleição de órgãos numa base paritária entre professores e alunos com a adição de representantes dos funcionários não docentes.

Espontaneamente foi a palavra que a própria lei utilizou, porque, embora tivesse podido determinar a cessação de funções dos dirigentes das instituições e estabelecimentose publicar um diploma a acomodar as várias experiências de gestão que foram surgindo, só no último dia do ano se procedeu a uma tentativa de enquadrar as várias experiências num único regime jurídico, aliás flexível.

Já sob o I Governo Constitucional, de Mário Soares, o Ministro da Educação Sottomayor Cardia viria a publicar um diploma mais pormenorizado – assente na eleição anual de assembleias de representantes – e mais enfático, com um preâmbulo, digamos, pouco conciliatório:

A tentativa de instauração de uma gestão democrática nos estabelecimentos de ensino superior que se propunha no Decreto-Lei n.º 806/74, de 31 de Dezembro, não conseguiu, na prática, concretizar os seus objectivos. As suas disposições foram formuladas de modo demasiado genérico. Deram cobertura legal à demagogia e à supremacia de minorias activistas, que, pela manipulação e pela coacção, conseguiram um efectivo domínio de grande parte das escolas superiores, com prejuízo da eficaz administração e gestão financeira, do pluralismo ideológico inerente à escola democrática, da qualidade de ensino, da necessária renovação pedagógica e da correcta inserção do ensino superior no contexto cultural e sócio-económico do País.

Três preocupações centrais presidiram à elaboração do presente diploma: instituir uma efectiva democracia nas escolas, de modo a que o seu clima interno não possa ser assimilado a esquemas medievais ou corporativos, ainda quando de feição anarco-populista; promover a qualidade científica e pedagógica do ensino superior, confiando adequada responsabilidade a quem disponha de competência; estabelecer em cada escola estruturas que garantam a correcta utilização das dotações orçamentais que o Estado destina ao ensino superior.

Os Conselhos Directivos em funções preferiram demitir-se em massa a colaborar na implementação do diploma.

Três anos e meio depois, num Seminário sobre Ensino Superior organizado pelo Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, Pedro Amaro, do Instituto Superior de Agronomia, reconhecendo embora que o diploma “encerra sem dúvida claras preocupações de carácter democrático”, fazia a seguinte avaliação da sua aplicação:

Há quem especule com a hipotética ineficiência dos Plenários e das grandes assembleias e fomente claramente o desinteresse da maioria dos docentes com acesso aos Conselhos Científicos, afastando-os sempre que possível da tomada de decisão. São também frequentes os casos de evidente transgressão dos dispositivos legais, não convocando órgãos de gestão, ou reunindo-os sem prévia agenda, chegando-se ao extremo de se adiar processos eleitorais para além de todos os prazos aceitáveis. Assiste-se também a claras manifestações de parcialidade de quem preside a órgãos de gestão e quantas vezes as actas traduzem mais a visão facciosa de quem as elabora do que a descrição objectiva dos acontecimentos. E tudo isto, quantas vezes, perante o desinteresse e a indiferença de quem presencia essas situações, talvez inconsciente da manipulação de que é vítima.

propondo a sua revisão, entre outros, nos seguintes aspectos:

  1. correcção da exagerada diluição de poderes de alguns órgãos e da tendência de excessiva importância dada ao Conselho Científico;
  2. eliminação das confusões senão dos conflitos de competências entre órgãos de gestão;
  3. regulamentação adequada que assegure o normal funcionamento de todos os órgãos de gestão previstos no diploma;
  4. coordenação, a nível de Universidade, que, sem comprometer a indispensável autonomia, no âmbito das Escolas, garanta a mais eficiente funcionalidade e a interacção entre as várias Escolas da Universidade;  
  5. coordenação, a nível da Escola, entre os vários órgãos de gestão.

O governo das universidades seria regulado por uma lei de autonomia que consagrava a eleição do Reitor e a existência de uma Assembleia da Universidade e de um Senado com paridade entre representantes de docentes e de alunos, princípio que se manteria até ao RJIES proposto em 2007 por Mariano Gago.

Logo em 1980 tinha sido criada legislação prevendo a departamentalização, que tanto veio a dar origem a departamentos por áreas científicas como a departamentos responsáveis por ciclos de formação.

 

  1. Advento do RJIES

 Para além de um novo regime de órgãos de governo e de gestão Mariano Gago institui através da criação da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior uma regulação por órgão independente do reconhecimento de formações de ensino superior.

José Reis

Tenho defendido que muito embora Rui Santiago tenha identificado atitudes e predisposições em O Surgimento do Managerialismo no Sistema de Ensino Superior Português foram a consignação de receitas das propinas e sobretudo a adoção de sistemas de financiamento por fórmula das instituições de ensino superior público que tinham em conta o número de alunos, as principais determinantes de um certo esforço “empresarial” de captação de alunos, através da multiplicação de cursos de banda estreita e até do esboço de abertura de delegações locais a que as privadas já recorriam.

O Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas (CRUP) reagiu mal em 2000 à ideia de regulação do ensino superior ensaiada pelo Secretário de Estado José Reis mas Mariano Gago, que publicara em 2006 legislação enformada pelo processo de Bolonha, teve sucesso nesta sua criação.

Já quanto ao Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) os que como docentes ou estudantes tinham vivido parte dos 30 anos de vigência do “Decreto Cardia”, terão ficado com a ideia de que a ruptura com a ideia de gestão democrática era total e que o novo regime tinha saído inteiro do cérebro (reconhecidamente) privilegiado do Ministro:

  • a base da organização é a instituição – universidade, instituto politécnico ou escola não integrada – sendo os estabelecimentos de ensino meras unidades orgânicas que podem ter ou não dirigentes eleitos;
  • a gestão de topo da instituição ou da unidade orgânica é sempre exercida por órgão singular, sem prejuízo de existir um conselho;
  • os poderes dos conselhos científicos e pedagógicos estão subalternizados em relação à gestão;
  • a representação dos alunos nos órgãos electivos é minoritária, a dos funcionários não docentes pode ou não existir e os docentes que não tenham a categoria de Professor nem estão representados, o que parece desrespeitar a CRP.
Mariano Gago

No entanto é de chamar a atenção para que as universidades novas criadas em 1973 por Veiga Simão – e que foram sendo construídas em parte por quadros oriundos do antigo corpo docente das Universidades de Luanda e de Lourenço Marques – saíram do regime de instalação em 1982 sem serem enquadradas no regime de gestão democrática, sendo que pelo menos a UNL funcionou num esquema semelhante ao que o RJIES viria a adoptar, para que algumas das outras novas universidades só muito tardiamente foram estruturadas em faculdades, para que algumas grandes escolas de engenharia se tinham dotado de Presidentes que tinham os presidentes dos conselhos directivo, científico e pedagógico como vice-presidentes, para que a dimensão de alguns conselhos científicos já não lhes permitia funcionar em plenário, e para que a participação paritária estudantil era gerível apenas quando os representantes não actuassem em bloco, como terá acontecido na Universidade de Coimbra.

Onde a solução do RJIES não tinha antecedentes era na criação de Conselhos Gerais de dimensão relativamente reduzida, integrados por representantes eleitos pelos corpos e por elementos externos, cooptados pelos primeiros, que detinham poderes de eleição dos Reitores e Presidentes, os quais não têm de ser vinculados à instituição, aparecendo o processo como um “concurso” a que por vezes se apresentam outsiders bem intencionados mas sem hipóteses.

Sobre o assunto a ex-Ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, colega de governo de Mariano Gago veio a escrever:

Vários estudos apontam para o risco de inversão da relação entre os conselhos gerais e os reitores. Os conselhos gerais foram concebidos como órgãos de governo das instituições de ensino superior, com elementos externos à universidade, com competências na escolha e fiscalização do Reitor. O reforço destes poderes dos conselhos gerais foi o contraponto necessário do reforço dos poderes executivos dos reitores. Na prática, porém, pelo menos em algumas universidades, os conselhos gerais estão transformados em extensões do poder dos reitores, que exerce um papel ativo na sua criação e composição. Inviabiliza-se, assim, a autonomia institucional necessária ao equilíbrio de poderes pretendido na Lei.

Anunciou o SNESup que uma das suas advogadas, a Dra. Celeste Cardoso, colocou uma acção com vista a obrigar a tutela a suscitar o processo de revisão do RJIES que deveria ter ocorrido cinco anos depois, isto é, em 2012. Este será necessariamente um aspecto a reponderar, e não apenas pelo condicionamento do processo pelos reitores em funções.

E que não se esqueça o estudo O Ensino Superior em Transição / A Auto-Reflexão de 2008/2009 das Universidades e Politécnicos de José Manuel Matos Pereira, patrocinado pelo SNESup.

 

  1. Garantia de direitos, antes e depois do RJIES

As associações sindicais docentes que têm no seu âmbito o ensino superior enfrentam regularmente situações – antes e depois do RJIES – em que um reitor, um presidente ou um director, arvorado em gestor, define políticas, muitas vezes à margem da lei, que ofendem os direitos – emprego, tempo de trabalho, remuneração – dos seus associados. Há sempre um administrador, um secretário, um assessor jurídico, para fazer um parecer conveniente e obrigar o assunto a ir para Tribunal Administrativo, onde os processos só “correm” de nome. E as instituições têm advogados que deduzem excepções e fazem trinta por uma linha para evitar que as questões de fundo sejam apreciadas em tempo útil.

Maria de Lurdes Rodrigues

Às vezes o director ou presidente é associado do sindicato ou de outro, e vemo-lo a renunciar à essa qualidade, secundado por um grupo de fiéis. Francamente não estou actualizado, mas conheci até no SNESup um caso potencialmente arriscado de Olívia – subdirectora e Olívia – delegada sindical, perfeitamente regular à luz dos Estatutos.

A Secretaria-Geral da tutela e a Direcção-Geral do Ensino Superior ou a Inspecção – Geral emitem por vezes pareceres sobre questões laborais que, se favoráveis ao docente, são descartados em nome da autonomia. Se desfavoráveis, são prontamente aproveitados e a sua aplicação generalizada. Em caso de necessidade até se pede um parecer à Direcção-Geral da Administração e Emprego Público.

Também sobre isso se pronunciou Maria de Lurdes Rodrigues, embora, creio, sem “afiliação sindical”, no texto já citado.

A autonomia das instituições públicas não pode em caso algum servir para diminuir o respeito pelas regras gerais previstas no Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), no Estatuto da Carreira Docente Universitária (ECDU) ou no Código do Procedimento Administrativo (CPA). Quando ocorrem problemas provocados pelo mau uso da autonomia de gestão, como acontece por vezes na aplicação do ECDU, ou irregularidades, conflitos ou tensões na aplicação de enquadramentos legais de ordem superior, não existe um poder de tutela que permita o seu esclarecimento e resolução.

Tem havido casos em que grupos prejudicados nas suas candidaturas à gestão recorrem aos sindicatos ou em que problemas laborais generalizados levam docentes a sindicalizar-se e mais tarde a concorrer à gestão. Trata-se de contaminar democraticamente as instituições.

Casos há também de colegas que, não encontrando possivelmente nas suas instituições quem reconheça os seus méritos em geral, e os seus dotes para a gestão, em particular, vêm exercê-los nos sindicatos. Neste caso será o espírito gestionário do RJIES a contaminar os sindicatos, sendo o caso da Norma nº 1/2017, que junto, um possível exemplo.

O nº 2 do Artigo 76º cuja redação actual é “As universidades gozam, nos termos da lei, de autonomia estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira, sem prejuízo de adequada avaliação da qualidade do ensino” data de 1982, tendo sido a vertente “estatutária” inserida em 1989 e a referência à avaliação em 1997.

No presente texto não nos debruçaremos em regra sob o subsistema politécnico nem sobre as privadas.

DL 221/74, de 27-5. Os DDLL 225/74 e 226/74, ambos de 28-5, concederam uma autonomia mais ampla ao ISCTE e ao ISE. No caso deste último, do qual era aluno à época, dizia o Artigo 7º “São conferidos ao conselho directivo todos os poderes necessários para introduzir as alterações convenientes nos planos de estudos, métodos e programas do Instituto Superior de Economia com vista à realização das mais amplas e inovadoras experiências pedagógicas e de investigação.””

DL 806/74, de 31-12.

DL 781-A/ 76, de 26-12

A Universidade Portuguesa em Debate, 7-8 de Maio de 1980, SPGL.

L 108/88, de 24-9.

Rui Santiago, António Magalhães, Teresa Carvalho, Coimbra, CIPES, 2005.

L 62/2007, de 10-9.

Mariano Gago pretendia que os Conselhos Científicos fossem eleitos por votação proporcional mas a Assembleia da República preferiu remeter a matéria para os Estatutos das instituições.

Não abordarei no presente texto a possibilidade de opção por um regime fundacional.

Maria de Lurdes Rodrigues, “Autonomia universitária e interesse público”, Público online, 18-6-2016.

Média XXI, 2010.


Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a Newsletter do Jornal Tornado. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

 

Receba a nossa newsletter

Contorne o cinzentismo dominante subscrevendo a nossa Newsletter. Oferecemos-lhe ângulos de visão e análise que não encontrará disponíveis na imprensa mainstream.

- Publicidade -

Outros artigos

- Publicidade -

Últimas notícias

Mais lidos

- Publicidade -