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Estaline e a guerra de informação putinista
À medida em que vão aparecendo as novas grandes derrotas no terreno depois da primeira debandada na frente Norte face a Kyiv, forçoso é constatar que a invasão militar desencadeada pela Rússia está muito aquém do que o ditador russo esperava que tivesse acontecido. Posto isto, a guerra da informação, mais ainda do que a guerra do gás, é aquela onde Putin tem marcado pontos, e esses pontos podem ser decisivos, pelo que convém prestar-lhe mais atenção do que aquela que lhe foi dada até hoje.
Especialmente interessante tem sido a metamorfose do personagem – operada em poucos meses – de covidista fanático mantendo os interlocutores a metros de distância, exigindo infindáveis testes a todos com quem lidava, envergando mesmo uma espécie de fato de astronauta, em crítico jocoso do covidismo, comparando mesmo as sanções contra a Rússia às medidas de confinamento (agência Tass, 2022.09.07) justificadas pela pandemia que deram um enorme rombo à economia, sociedade e especialmente a saúde dos cidadãos em vez de a melhorar.
A imensa quantidade de desinformação produzida pela máquina pós-soviética, aproveitando alguns erros crassos das autoridades europeias, visa fundamentalmente esconder o sucesso das sanções à Rússia, que está a levar à exaustão do seu equipamento de guerra e a obrigar o exército de Putin a recorrer aos drones iranianos e às munições norte-coreanas, com resultados que não parecem ser brilhantes.
Se para a exportação, Putin tem apenas de apostar na falta de memória dos cidadãos ocidentais e na infiltração anónima de movimentos existentes – como o da denúncia dos efeitos contraproducentes da histeria covidista – para o mercado interno, Putin recorre a soluções mais radicais como a da reescritura da história, apagando dela as verdadeiras monstruosidades cometidas e substituindo-as por feitos gloriosos inventados.
Neste domínio, mais importante do que relembrar a implacável crítica de Marx à lógica do imperialismo russo – a que me dediquei aqui no Tornado – é desmontar a ficção histórica que voltou a ser erigida à volta do líder russo mais tirânico e psicopata: Estaline, de que Putin é um émulo assumido.
E, exactamente por isso, vem muito a propósito relembrar o relatório de Nikita Khrushchev ao vigésimo Congresso do Partido Comunista (Bolchevique) da União Soviética sobre os crimes de Estaline, relatório que – não esqueçamos – o PCP na senda da sua integral fidelidade a Moscovo endossou plenamente, o que lhe valeu de resto ser apelidado de ‘revisionista’ pela extrema-esquerda maoísta criada nos anos 1960.
Li este Verão uma versão francesa comentada da autoria de Branko Lazitch, que faz questão de sublinhar algumas incongruências (em geral no sentido de amenizar, não de sublinhar os horrores do estalinismo, até porque o autor foi um seu destacado colaborador) e de exagerar as diferenças entre Lenine e Estaline, mas que não deixa de concluir pelo feito extraordinário de vermos o principal líder comunista do tempo ir tão longe na crítica do que foi feito em nome do comunismo.
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Os genocídios estalinistas
No domínio dos genocídios estalinistas, por exemplo, nem uma vírgula se diz sobre o Holodomor. Khrushchev deixou a Ucrânia, onde tinha vivido a maior parte da sua vida e onde era um importante dirigente comunista, indo para Moscovo em 1932, ano do início do Holodomor. Não poderia por isso ter ignorado o que foi o maior genocídio soviético, e provavelmente sentiu a consciência pesada por nada ter feito para impedir esse genocídio. Igualmente não se refere à limpeza étnica dos tártaros da Crimeia – formalmente parte da Rússia na altura em que apresentou o relatório, mas historicamente mais ligada à Ucrânia – embora dedique parte do seu relatório às limpezas étnicas de tchetchenos e inguches, limpezas bem conhecidas, assim como outras menos conhecidas como a limpeza étnica dos karatchais e Balkars – minorias de religião muçulmana – ou a dos Kalmuques, minoria de religião budista.
Aqui, tecnicamente, a expressão genocídio aplica-se integralmente, dado que o conceito desenvolvido internacionalmente de genocídio engloba o que designamos mais especificamente de limpeza étnica (que é o que aqui se verificou), mas é verdade que não podemos colocar necessariamente no mesmo plano a expulsão de uma população de um território com a sua execução pela fome ou de forma industrial em câmaras de gás, como foi feito pelos Nazis.
A razão pela qual estes conceitos de limpeza étnica e de genocídio são vistos como equivalentes tem razões históricas. O genocídio dos cristãos da Turquia de 1915/1916 (arménios, mas não só) foi principalmente feito através de limpeza étnica seguida de marchas forçadas infernais em que quase todos morriam de exaustão, ou de outra forma.
Aqui, realce-se que a lógica estalinista do exílio – que Soljenitsin tornou célebre no ‘Arquipélago de Gulag’ – era pelo menos meio caminho andado para a morte, pelas condições desumanas de transporte, de vida e de trabalho. O mesmo se verificou com estas limpezas étnicas que terão vitimado grande parte dos que foram expulsos de onde viviam.
Em qualquer caso, o simples facto de o sucessor de Estaline acusar o seu antecessor de crime de genocídio no momento mais solene da liturgia comunista – o Congresso – tem obviamente um enorme significado.
A acusação – feita de viva-voz por Nikita Khrushchev, pp.116-118 da versão consultada – é complementada pelo que é normalmente conhecido como ‘testamento de Lenine’ e igualmente distribuída no Congresso em dezasseis documentos, testamento que tinha sido já divulgado de forma diversa quer por Trotsky, quer por Boris Souvarine (este, o primeiro grande dissidente bolchevique a deixar uma notável obra sobre os crimes do bolchevismo, obra de leitura obrigatória para quem se interessa pelo tema).
Neste domínio do imperialismo russo, um artigo em três partes sobre a ‘questão nacional’ de Lenine que ele dita à sua secretária quando se encontra já gravemente doente e que terão ficado na posse de uma irmã mais nova, permanecendo inéditos, é o mais importante.
O artigo de Lenine é um libelo acusatório a Estaline e ao estalinismo: ‘A responsabilidade política de toda esta campanha nacionalista russófila deveria ser claramente atribuída a Estaline e a Djerjinski’ (p.179, terceira parte). Djerjinski é polaco, Ordjonikidze é, tal como Estaline, georgiano.
Esta peculiaridade de os três acusados de chauvinismo russo não serem de origem russa merece de Lenine uma explicação: ‘é publicamente notório que os não-russos russificados têm sempre tendência a exagerar as suas atitudes 100% russas’ (p. 176, primeira parte).
Referindo-se em particular à agressão anti-Geórgia vinda de georgianos russificados Lenine afirma: ‘O georgiano que negligencia este ângulo do problema e acusa os outros de ‘social-chauvinismo’ (quando ele mesmo é não só um verdadeiro social-chauvinista mas mesmo um brutamontes ao serviço de uma grande potência), esse georgiano, no fundo, ameaça os interesses da solidariedade da classe operária. Porque nada obsta mais o desenvolvimento e o reforço da solidariedade da classe proletária do que uma injustiça nacional.’ (p.178, segunda parte).
De uma forma mais penetrante ainda, Lenine observa: ‘Dizem-nos que precisamos de unidade do aparelho. Qual é a origem dessa afirmação? Não era já esse mesmo aparelho russo (…) que nós herdámos do czarismo e que apenas ungimos superficialmente do santo óleo soviético?’
E esta é talvez a observação de Lenine mais letal para o estalino-putinismo: o sovietismo de Estaline é ungir o chauvinismo russófilo czarista com óleo santo soviético!
E é aqui que se tornam evidentes as razões do desconforto de Putin com Lenine. Mesmo para Putin, que proibiu toda a investigação histórica sobre os crimes do comunismo, não será fácil apagar das memórias o mais célebre relatório de um dos mais importantes dirigentes comunistas. Putin optou assim por criticar a fraqueza de Lenine e a enaltecer a força de Estaline perante as nacionalidades não russas como condição necessária à nova expansão territorial que está em curso.
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O genocídio suicidário
Se Nikita Khrushchev – e confesso, de forma algo surpreendente – refere os crimes do estalinismo que não têm por alvo russos ou mesmo comunistas, ele mantém a ficção do carácter benigno dos crimes de Lenine (que nem por terem atingido o grau de horror dos do seu sucessor, são menos crimes por isso) e secundariza ou relativiza as críticas aos restantes bolcheviques, mesmo ao mais famoso dos diabolizados, Léon Trotsky, para assentar baterias nos crimes cometidos por Estaline contra os comunistas.
O mais óbvio e espectacular de todos foi o pacto germano-soviético e a inabalável fé de Estaline na permanente amizade de Hitler pela versão soviética do socialismo nacional. Aqui, os dados são conhecidos, mesmo que pouco divulgados, e a importância que eles aqui têm é serem da autoria do sucessor de Estaline.
Estaline ignorou os sinais evidentes no terreno da preparação da invasão pelas forças de Hitler bem como os inúmeros relatórios circunstanciados que lhes fizeram chegar as diplomacias ocidentais ou os serviços de espionagem soviéticos – alguns dando a hora precisa do início do ataque muito tempo antes de ele se desencadear.
Mesmo após o início do ataque (p.107) Estaline deu ordens para não reagir, porque se tratava certamente de generais alemães que desobedeciam às ordens do führer. Só ao fim de vários dias em que as tropas alemãs dizimaram as forças soviéticas é que Estaline entendeu que a sua crença era falsa e caiu então numa letargia – durante vários dias a União Soviética ficou sem comando – que só foi interrompida quando os seus mais directos colaboradores o conseguiram convencer a retomar o comando.
E mesmo depois disso, até que foi finalmente convencido a deixar os militares decidir na matéria, ele não parou de dar ordens suicidas às tropas soviéticas.
E convém aqui recordar que pouco antes da guerra, toda a nata das forças armadas soviética foi dizimada, sendo executada de imediato ou enviada para a Sibéria, de onde poucos estavam ainda vivos quando se deu a invasão alemã, na lógica de purga permanente que o levou primeiro a dizimar a primeira geração bolchevique (todos os membros do comité central bolchevique de 1917 que não tiveram a sorte de morrer de morte natural foram executados ou deportados e depois deixados morrer). Mas depois de feita a purga destes, começou a dos que lhes sucederam, e depois ainda – quando era por demais óbvio que se aproximava a guerra – foi a vez de chacinar em massa os líderes militares (foram ridiculamente acusados de ser espiões a soldo do inimigo).
A última chacina, que ele tinha encomendado a Béria, o último dos seus fiéis, tinha por alvo os médicos mais prestigiados do país (que entre outras coisas, tinham trabalhado pela sua saúde) e foi evitada in extremis pela morte de Estaline que levou ao afastamento de Béria.
Mas mais impressionante que esta psicopatia assassina e suicidária de um líder (comum a outros, como Hitler) é constatar que ela é bem-sucedida, e que, não fosse o erro de Estaline de poupar Khrushchev, a imagem de génio sobrenatural de Estaline teria talvez sobrevivido intacta.
E é essa a lição da história que me parece dar-nos razões para mais preocupações: apesar da psicopatia e dos erros monumentais de Putin, nada nos garante que a sua guerra esteja necessariamente perdida.
Estaline aí está para provar que isso não terá de ser necessariamente assim. E é por isso que me parece perigoso cantar vitória antes do tempo ou menosprezar as capacidades do adversário, que em matéria de desinformação são muito grandes.