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Terça-feira, Dezembro 24, 2024

O Juiz, a Política e a Cidadania

João de Almeida Santos
João de Almeida Santos
Director da Faculdade de Ciências Sociais, Educação e Administração e do Departamento de Ciência Política, Segurança e Relações Internacionais da ULHT

Merece alguma reflexão a decisão do Juiz Cardoso, o que analisou e chumbou a candidatura de Isaltino Morais à Câmara de Oeiras! Sim, merece! Decisão, ao que parece, premeditada, no tempo e no tecnicismo, em face da manhosice da própria lei e do espírito de quem a desenhou! Dizem os entendidos que, em política, o que parece é! Pois, se aqui pareceu, logo, foi! Isaltino-Candidato-Morais  – o rejeitado – foi reabilitado pelo Tribunal, o Juiz desautorizado e sujeito a inquérito pela corporação. Ser padrinho já não é o que era! E, depois deste episódio, ainda o será menos! Ficamos, pois, a aguardar o resultado do inquérito e a sanção, se for considerado culpado, em “segunda instância”, visto que, em “primeira instância”, já o foi ao ver revogada a sua decisão, sendo devolvida a candidatura ao seu promotor, Isaltino.

Na verdade, este assunto nasceu e já quase morreu, embora ainda tenha vários andamentos em curso, pela relevância da matéria. Primeiro: o inquérito ao Juiz e a sanção que lhe será aplicada se for considerado culpado. Segundo: os resultados de Vistas, nas eleições, depois deste lamentável episódio de compadrio – assim mesmo! -, político-judicial. Terceiro: a força das candidaturas não partidárias perante o sistema de partidos e suas consequências políticas.

Os movimentos autárquicos não partidários

Este último ponto é politicamente muito relevante. Temos várias candidaturas não partidárias com personagens muito influentes. Porto, Oeiras, Covilhã, Gondomar são algumas delas, só para dar os exemplos mais significativos e, sobretudo, onde o embate político entre o sistema de partidos e os movimentos não partidários é mais claro, aceso e politicamente linear. Destes resultados poder-se-á concluir acerca da resiliência dos partidos tradicionais a candidaturas fortemente personalizadas e anti-sistema. O Rosto contra a Marca, em ambientes eleitorais urbanos, com eleitorado compósito e de grande dimensão, parece ser o desafio central e decisivo.

Imaginemos o seguinte cenário: todos eles ganham as Câmaras e decidem criar um movimento político de dimensão nacional que possa vir obter o estatuto de partido para fins eleitorais! Mais: a AMAI (Associação Nacional dos Movimentos Autárquicos Independentes), presidida por Aurélio Ferreira, candidato a Presidente da Câmara da Marinha Grande, toma iniciativas tendentes a constituir grupos políticos municipais e a organizá-los, desde logo, em rede (tipo “MeetUps”, a nível nacional). Este cenário seria muito perigoso para o sistema de partidos!

A força actual destes movimentos não partidários já é enorme, dispondo da presidência de treze câmaras, algumas de primeiro plano, e sendo a terceira força política ao nível das Assembleias de Freguesia. Uma força que não é muito maior porque tem sido travada pelos tribunais (casos, por exemplo, de Gondomar, Guarda ou Alandroal) ao despacharem favoravelmente impugnações promovidas pelos partidos tradicionais, alicerçadas numa lei inaceitável e desenhada pelos partidos em causa própria.

Com efeito, pedir-se que as listas contenham já os nomes de todos os candidatos no próprio acto de subscrição e nascimento do movimento é pura manhosice política e até ilegítima sobreposição ao prazo legalmente estabelecido para formalização oficial das listas de candidatos. Mas a verdade é que nem a presença orgânica em todo o território nacional dos principais partidos nem a configuração manhosa das normas que regulam as candidaturas dos grupos de cidadãos têm impedido a vasta implantação dos movimentos não partidários.

Tapar o sol com uma peneira?

Como a realidade tem vindo a demonstrar, não serão os artifícios técnico-administrativos que impedirão o crescimento de novas formas de intervenção política diferentes das que têm vindo a ser adoptadas pelo sistema de partidos tradicional. Nem os partidos os deveriam adoptar, obrigando-se eles próprios, pelo contrário, e até num gesto de boa-fé, a ir ao fundo da questão: adequar-se às profundas transformações que as sociedades estão a conhecer em todos os planos (político, social, cultural, civilizacional) e responder com eficácia às expectativas de uma cidadania que já não corresponde aos modelos orgânicos que estiveram na origem dos próprios partidos.

Na verdade, os grandes partidos com vocação governativa, com dominante componente orgânica e territorial, há muito que perderam a capacidade de integração política, cultural e civilizacional da cidadania, tendo-se transformado em puras máquinas eleitorais com vista à conquista do aparelho de Estado, à garantia da sua auto-reprodução e à alimentação da imensa e voraz máquina que lhes serve de suporte nos momentos eleitorais.

Há muito que estes partidos remeteram para segundo plano a dimensão crucial da ética pública, remetendo-se à condição de meros gestores, mais ou menos flexíveis (algumas vezes autênticos aprendizes-de-feiticeiro), dos interesses instalados, e uma visão estratégica que fosse capaz de envolver politicamente a cidadania e de, consequentemente, a envolver no projecto colectivo. O resultado tem-se visto: o aparecimento de forças que lhes apontam, politicamente, o dedo em riste e se oferecem como alternativa. Muitas delas apenas de vocação populista e carismática.

A endogamia e a cidadania

Não estou convencido de que os partidos tenham esgotado a sua função, mas tenho a certeza de que não estão a responder aos desafios que a nova cidadania lhes lança, prisioneiros que estão de lógicas endogâmicas que os desvitalizam estruturalmente. E creio que o que está a acontecer, no plano autárquico, em Portugal, e, no plano nacional, noutros países – por exemplo, na França -, é o mais evidente sinal de que algo terá de mudar, não para que tudo fique na mesma, como no transformismo de matriz italiana, mas para que os cidadãos voltem a acreditar na bondade e na eficácia de uma política de intermediação que, apesar de tudo, não deixou de ser necessária.

Mas para que isso aconteça é preciso que, à partida, alguém se empenhe em revitalizar a cidadania e em criar canais de participação eficazes, como, por exemplo, defendem os que acreditam no valor de uma política deliberativa levada à suas máximas consequências, como a adopção da deliberação pública enquanto momento formal e obrigatório da decisão política. Até porque os cidadãos dispõem, hoje, como nunca, de poderosos meios de conhecimento e de intervenção cívica, política e cultural capazes de os levar à primeira linha do debate no espaço público e à participação activa na construção de boas soluções estratégicas para o país.

Conclusão

Neste sentido, a lição que poderemos tirar, nós, aqui, em Portugal, das próximas eleições será precisamente esta: até que ponto os partidos tradicionais se estão a tornar irrelevantes nesta dimensão do exercício político da cidadania? E que consequências poderão resultar, no futuro próximo, desta tendência em movimento para a política a nível nacional?

A vitória de candidaturas não partidárias em ambiente urbano e de grande dimensão poderá dar uma primeira resposta a esta questão e por isso mesmo suscitar uma profunda reforma no nosso sistema de partidos, se estes não quiserem ver-se afastados do poder e tornar-se politicamente subalternos.  Lembro a recente lição francesa e a subalternização dos socialistas e dos republicanos num simples ano de combate político para as presidenciais e para as legislativas!

 

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