“O liberalismo está obsoleto”. Quem disse isso foi ninguém menos que Vladimir Putin, o poderoso presidente da Rússia, para a edição de 28 de junho do jornal inglês Financial Times. Ele disse mais. Em pleno G20 afirmou que a chanceler alemã, Angela Merkel, havia cometido um erro fundamental ao adotar uma política liberal para imigração do Oriente Médio. Merkel autorizou a entrada de mais de um milhão de refugiados na Alemanha, principalmente sírios, fugindo da guerra.
Putin disse que “A ideia liberal (…) está em conflito com os interesses de uma maioria esmagadora da população”. Para ilustrar o que seriam esses “interesses da maioria” afirmou que, embora, segundo ele, a Rússia não seja um país marcado pela homofobia, a disposição do Ocidente em abraçar a homossexualidade e a fluidez de gênero são excessivas “num mundo baseado em valores bíblicos”.
Em suma, disse, liberais já “não podem simplesmente ditar qualquer coisa para qualquer um, como vêm tentando fazer ao longo das últimas décadas”. O liberalismo ocidental perdeu espaço devido ao ressentimento com imigração, multiculturalismo e valores seculares.
O que me chamou a atenção ao ler esta notícia, além, é claro, de seu reacionarismo fundamental, foi a crítica ao liberalismo vindo da direita. Desde que o liberalismo dita as regras é a esquerda sua mais feroz opositora. Isso porque o liberalismo prega, grosso modo, estado mínimo e liberdade do setor privado em colocar seus preços, de acordo com a concorrência, e regulamentar sua força de trabalho, de acordo com a oferta e demanda.
Mas, se para exemplificar Putin fala de homossexuais, de qual liberalismo estamos falando?
Aí é que está. Para os americanos, e o presidente russo usar o termo liberalismo neste sentido, ser liberal é ser progressista, é abraçar o estado de bem-estar social. Ao dizer que o liberalismo está obsoleto, na entrevista, ele refere-se à pauta dos costumes, à pauta identitária, e não ao liberalismo econômico. Esta visão abrange sim a questão dos homossexuais, dos imigrantes e dos valores bíblicos a que se refere. Ele está errado, claro. A evolução de uma nação passa justamente por aceitar e afirmar todas as identidades humanas e por derrubar dogmas opressores. Meu ponto aqui, entretanto, não é nem desmontar a visão retrógrada de Putin, nem refletir sobre o esfacelamento do discurso da esquerda em diversas bandeiras específicas. É entender se o seu antiliberalismo abrange também um protecionismo econômico e um estado forte, ou se limita a dizer como as pessoas devem se comportar. Meu ponto é também trazer esta questão para a nossa realidade tropical, onde os conceitos de liberal e conservador estão juntos e misturados.
Bolsonaro, com seu Chicago Boy, Paulo Guedes, ganhou a eleição apresentando o liberalismo como farol da salvação econômica. Isso não condiz com seu histórico parlamentar, mais próximo de Cháves do que de Reagan. Desde sua posse, em janeiro, ele não parece muito afeito a lidar com assuntos da economia, os quais delega para o ministro. Mas, diversas vezes interferiu pesadamente em decisões “liberais” de Guedes, mostrando que ele, que nesta história representa o estado, é quem determina as coisas. A intervenção no preço do Diesel foi a mais escandalosa delas. Além disso, chamou a atenção o viés autoritário com o qual demitiu o liberal Joaquim Levy do BNDES por questões políticas e até mesmo pessoais.
O presidente e os ministros com os quais tem mais afinidade, que são dos da “ala ideológica” (Ernesto Araújo, Abraham Weintraub e Damares Alves) reiteradamente afirmam que a linha do governo é a da família patriarcal e dos dogmas religiosos. E fazem questão de apresentar aos brasileiros suas referências ao modo de ser. Talvez nisso ele esteja de acordo com Putim.
Paulo Guedes, entretanto, tenta ser liberal em meio aos desvarios do governo. Tenta defender e emplacar reformas austeras, antissociais e impopulares, justificando com cálculos e tabelas a necessidade do “ajuste”, como bom liberal.
Vivemos, então, o pior de dois mundos. Um liberalismo tosco, com menos proteção social e mais liberdade para exploração do capital, e um conservadorismo tosco, com o aumento da discriminação entre homossexuais, negros, mulheres, imigrantes. Em um real liberalismo econômico não faria sentido discriminar as chamadas “minorias” dado seu poder de consumo e de movimentação da economia. Por outro lado, de um estado que se diz mais conservador, espera-se maior proteção social, mais serviços públicos, maior regulamentação do trabalho.
Concluo que, embora haja globalmente uma reação conservadora ao liberalismo dos costumes, que Putin diz estar obsoleto, ele é um caminho sem volta. Hoje a humanidade já tem um repertório acumulado que sustenta a luta pela liberdade, igualdade e pela emancipação das pessoas, sejam elas como forem. Na economia, em contrapartida, não são os estados, mas as grandes empresas, hoje atuando na era digital, que é ainda mais difícil de delimitar, que continuam ditando as regras, com base na concorrência, na oferta e na demanda.
Texto em português do Brasil
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