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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

“o meu menino já sabe escrever!”

Vitor Burity da Silva
Vitor Burity da Silva
Professor Doutor Catedrático, Ph.D em Filosofia das Ciências Políticas Pós-Doutorado em Filosofia, Sociologia e Literatura (UR) Pós-Doutorado em Ciências da Educação e Psicologia (PT) Investigador - Universidade de Évora Membro associação portuguesa de Filosofia Membro da associação portuguesa de Escritores

Talvez um refrigério, uma amálgama de castigo este lugar de sentado na cama da fome, o Lúcio escreve sozinho gatafunhos para soletrar na cozinha onde a avozinha que nunca estudou tenta ler e diz baixinho

“o meu menino já sabe escrever!”

e lá pelos alpendres uma rosna que ronca, barulhos enfeitiçados como se tudo aqui fosse aquele pedaço esquimó plantado nas lezírias que fervem, uma razia ambulante sem altifalantes e as ruas embelezadas com bandeiras

“o benfica é campeão!”

que se roçam com o vento dos nortes que descem como quimeras, quem me dera um texto, um livro que apenas falasse comigo e nele conseguisse rasgar o meu delírio de ambulante na minha casa onde só sangram sentenças de quem nem sequer me conhece,

“raios me partam!”

esta dor nas costas e deitado no cimento que dá para as traseiras do quintal duro, onde já nada é meu, a minha alma partiu deixando-me aqui, completamente isolado da existência!

Abro de mim este escuro e nada, apenas vozes sentenciam a cor da razão e com elas conviver e pronto, ser apenas isso um enfim triunfal que nada resolve, uma sala de berros e cegos e na televisão as notícias cem vezes repetidas ordenamos,

“escutem” é o noticiário!”

já tantas vezes visto e lido e já cansa até, sim, esta casulo de imperiais que me ressoltam às resmas do que ficar e depois vem quem chegar, a televisão ordenou a única sentença e nada mais ninguém saberá.

A minha avó descansa e sentada coitada, velhota e linda e quando chego aquele afecto

“o meu beijo filho!”

deixa-me na boca um sabor do sangue, essa voz que ninguém conseguirá ocupar venha de onde vier, e enfim abraçamo-nos como coitados num amor saboroso é a vida, quem a pode mudar?,

“o meu menino já sabe escrever!”

dizia ela tantas vezes e ela nunca soube ler coisa nenhuma, apenas aprendeu a ler os sentidos da vida onde só o afecto consegue entrar e aí ensinar, crescer para viver, sentir o sabor do tempo em todas as escalas da escola onde me colocaram para ser doutor.

Ainda hoje, mesmo longe, um longe que não consigo desvendar mora o corpo que te mantem na minha cabeça, viva sempre acredita, o amor é essa tal coisa que nem mortes ou raios que os partam nos faz dissipar.

Tantas as vezes ainda em todos os amanheceres dos meus dias te peço ainda que leias o que escrevi para ti e ouvir de ti

“o meu menino já sabe escrever!”


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