Talvez um refrigério, uma amálgama de castigo este lugar de sentado na cama da fome, o Lúcio escreve sozinho gatafunhos para soletrar na cozinha onde a avozinha que nunca estudou tenta ler e diz baixinho
“o meu menino já sabe escrever!”
e lá pelos alpendres uma rosna que ronca, barulhos enfeitiçados como se tudo aqui fosse aquele pedaço esquimó plantado nas lezírias que fervem, uma razia ambulante sem altifalantes e as ruas embelezadas com bandeiras
“o benfica é campeão!”
que se roçam com o vento dos nortes que descem como quimeras, quem me dera um texto, um livro que apenas falasse comigo e nele conseguisse rasgar o meu delírio de ambulante na minha casa onde só sangram sentenças de quem nem sequer me conhece,
“raios me partam!”
esta dor nas costas e deitado no cimento que dá para as traseiras do quintal duro, onde já nada é meu, a minha alma partiu deixando-me aqui, completamente isolado da existência!
Abro de mim este escuro e nada, apenas vozes sentenciam a cor da razão e com elas conviver e pronto, ser apenas isso um enfim triunfal que nada resolve, uma sala de berros e cegos e na televisão as notícias cem vezes repetidas ordenamos,
“escutem” é o noticiário!”
já tantas vezes visto e lido e já cansa até, sim, esta casulo de imperiais que me ressoltam às resmas do que ficar e depois vem quem chegar, a televisão ordenou a única sentença e nada mais ninguém saberá.
A minha avó descansa e sentada coitada, velhota e linda e quando chego aquele afecto
“o meu beijo filho!”
deixa-me na boca um sabor do sangue, essa voz que ninguém conseguirá ocupar venha de onde vier, e enfim abraçamo-nos como coitados num amor saboroso é a vida, quem a pode mudar?,
“o meu menino já sabe escrever!”
dizia ela tantas vezes e ela nunca soube ler coisa nenhuma, apenas aprendeu a ler os sentidos da vida onde só o afecto consegue entrar e aí ensinar, crescer para viver, sentir o sabor do tempo em todas as escalas da escola onde me colocaram para ser doutor.
Ainda hoje, mesmo longe, um longe que não consigo desvendar mora o corpo que te mantem na minha cabeça, viva sempre acredita, o amor é essa tal coisa que nem mortes ou raios que os partam nos faz dissipar.
Tantas as vezes ainda em todos os amanheceres dos meus dias te peço ainda que leias o que escrevi para ti e ouvir de ti
“o meu menino já sabe escrever!”
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