Na escrita não cabe a burocracia. Tampouco enxertos pomposos. Esses fenômenos corriqueiros e feitos para impressionar.
Se quer tocar e ser tocado escreva o que em ti te pareça obsceno. Ou pequeno. Ou até mesmo cruel. Nada tema. Ninguém te julgará por ser demasiadamente humano.
Vamos à isso? Eu começo. E começo assim;
Olha, eu vou morrer.
Não agora. Não nesse instante. Não amanhã ou depois de amanhã. Mas é fato que vou.
E sei que não é educado falar de morte. Principalmente da sua. Mas é fato. Eu vou morrer. E essa constatação me alivia a busca. Pois sei que do outro lado existe outra busca. Por isso me acomodo nessa de agora. Tento achar na estrada uma cadeira confortável, um pouco de sombra, água e alguns rostos amigos. Porque os amigos são seres essenciais.
Mudo também os sapatos. Esses pesados e cheios de claros objetivos não servem. São uma colmeia de inquietações.
Um dia, um místico me disse para ser livre e que para isso eu deveria carregar o mínimo de peso possível. Ingênua, pensei tratar-se de coisas materiais e então me desfiz da máquina de lavar e também do velho televisor. E assim fui levando os meus dias num encantamento sublime por poder me dispor de coisas que antes julgava indispensáveis. Mas claro que não era a isso que ele se referia. O que ele queria era que eu me dispusesse do peso da alma e também desses ressentimentos que correm em nossas artérias e que deixa o nosso sangre grosso e escuro. Óbvio que não consegui. Não de todo. Mas tentei. Foi duro o processo.
Os místicos e os santos tem um quê de sádicos e exigem de nós uma pele que não temos. E lá estava eu tentando agradar outro deus. Só que dessa vez era um deus nu.
Nu e simples que zombava, com seu rosto sereno, da minha necessidade de coisas. Desde então nunca mais olhei para uma estátua de Buda.
E também parei de acreditar nos místicos. Embora eu continue indo na cartomante. Que para mim são uma espécie de mãe e oráculo. Gosto do frisson do presságio. O que elas fazem com as cartas é algo parecido com o que fazemos com as palavras. Não nego a minha vaidade e urgência em colocar sob os meus pés a fina esteira do impossível. É sobre a delicada confecção de um sonho que caminho.
Cada passo então segue automaticamente calçado pelo extraordinário. É isso. Tudo o que vivo é de uma extensão aguda e divina. Por isso não me foi difícil dizer que vou morrer, pois não vejo a morte como um estado escuro. Aceitar a morte é a abraçar a vida com mais vontade. É só isso.
É um consentimento mudo de que vivemos cada segundo sob uma áurea de mistério e maravilhamento. Não escapamos da morte. E não escapamos da vida. Tudo é afago ou corte. Mas é. Não somos nós que produzimos. O que fazemos é elaborar e traduzir o espanto que é viver nesse assombroso modo de inconstância e à mercê do invisível. Somos todos reféns do impensável.
Por exemplo, o sol hoje está forte e brilha. Mesmo sendo outubro, mesmo em pleno outono, ele brilha.
Já ontem, o céu estava vestido de tormenta e pessoas cinzas me diziam barbaridades ao pé do ouvido.
Hoje, ao sol, outras pessoas me sorriem. E amanhã o dia se vestirá de outra cor. Uma que ainda não conhecemos. Portanto perceba que o desespero é algo bem estúpido. Assim como é o total maravilhamento.
Se soubéssemos de modo bem introjetado que não detemos nada, seríamos bem mais pacíficos.
Mas claro, não é para isso que estamos aqui. Não mesmo.
Som e fúria. Não é assim que disseram? Somos uma parede sólida e burra diante do fluxo constante das coisas. Mas se não o fôssemos, não poderíamos definir o fluxo pois que seríamos parte dele. E é só porque ele nos atravessa com tamanha dor e violência é que existimos. É o contraste que nos define.
Para cada escuridão, a exata luz.
Para cada erro, um acerto. Ou meio.
Para a agonia, o gozo.
Para o frio da alma o manto morno da experiência.
E assim vamos. Dando e tomando tudo. Sem medir esforços e consequências.
Vamos.
Termino dizendo que para existir é preciso o sal, o açúcar e o sangue de todos os nossos dias. Mas é claro que isso, e tudo o mais que eu disser adiante, não será de todo suficiente…
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