Era uma vez um Príncipe…
Reparem, muitas histórias começam assim, com Era uma vez, e a seguir um Rei, ou Rainha, ou Príncipe ou Princesa…
Fazem-nos entrar num mundo de encantamento, onde tudo pode acontecer, de bom ou de mau.
Mas preferimos que tudo o que venha a acontecer não seja assim tão mau…
Dizemos que as histórias, se possível, devem ter um final feliz. Mas claro, há muitos modos de felicidade, há muitas maneiras de acabar uma história. Por vezes o final da história escapa ao que tínhamos pensado, e a história, com os seus príncipes e princesas, acaba como entende e nada podemos fazer contra isso.
Por exemplo, na história da Casinha de Chocolate, os meninos, depois de matarem a bruxa má, empurrando-a para dentro do fogão carregado de lenha, voltam para casa. Mas não teriam gostado mais, se calhar, de ficar ali a comer todo o chocolate que havia por dentro e por fora da casa? Eu ficava ali um bocadinho a comer chocolate! Mas claro, eu não estava nessa história, não podia fazer nada, as histórias são assim mesmo, como cada um gosta de as contar.
Voltando ao nosso Príncipe:
Era uma vez um Príncipe que resolveu sair do seu palácio na cidade, porque a cidade se tinha tornado tão grande e tão barulhenta que não o deixava ouvir o canto dos seus pássaro preferidos no jardim.
O jardim era grande, mas a cidade com o seu barulho de carros, autocarros e aviões tinha-se tornado ainda maior: ensurdecedora.
Os melros apareciam ao fim da tarde, mas o Príncipe não dava por eles, e era pena. Dos rouxinóis nem se fala, andavam muito ofendidos, por já não conseguirem que se ouvisse os maravilhosos trinados de tenor e mesmo de contratenor, chilreios ainda mais raros.
O Príncipe podia ter pedido ao Rei que multasse ou mesmo proibisse a entrada de tanto carro e autocarro na cidade. As pessoas que andassem de metro, um transporte mais limpo, dizia-se, e mais rápido. E os Reis podiam mandar o que quisessem: eram reis…
Mas não.
Preferiu ir-se embora para longe. Sendo um Príncipe do ocidente preferiu procurar o oriente.
Saiu do palácio às escondidas, numa bela noite de luar, sem dizer nada a ninguém, para que não insistissem com ele: fica, meu filho, fica, veremos o que se pode fazer, para ouvires melhor os pássaros do jardim. Repara, eles não se foram embora, ficaram e cantam, aguardam…
Mas o Príncipe era impaciente, não queria esperar e foi-se mesmo embora.
O Rei não viveria sozinho. No palácio havia ainda a Rainha, a pequena Princesa de belas tranças compridas que ele gostava de puxar, havia ainda o Preceptor, um maçador que lhe dava aulas, falava, falava, nunca os ouvia a ele e a irmã, nunca os deixava espreitar pela janela, nunca os deixava perguntar coisa nenhuma, se tinham percebido, se era preciso explicar um pouco melhor, enfim. O que o Preceptor gostava era de fazer queixa ao Rei e de os pôr de castigo, proibindo-os de brincar lá fora no jardim. Ora o jardim era a alegria do Príncipe.
Mas aqui tenho de dar uma opinião:
Os meninos, sejam Príncipes ou Princesas, devem todos estudar, estudar como deve ser, aprender a ler, a escrever bem, a contar, sabendo as tabuadas de cor e tudo o mais que for preciso, para não crescerem sem educação, sem inteligência, sem imaginação e sem competência (o que mais tarde pode criar grandes dificuldades na vida).
A vida não é só feita de rosas, há muitos espinhos por aí espalhados.
O Preceptor só fazia mal em ser queixinhas. Esse é um grande defeito que ele podia corrigir. Talvez com tempo.
A noite em que o Príncipe fugiu era uma noite de luar, o céu parecia de veludo.
Recordando as aulas de astronomia (afinal nem tudo era mau nas aulas do Preceptor) procurou orientar-se pelas estrelas: queria seguir o caminho das montanhas que se encontravam a leste. A sua busca era do oriente.
Andou e andou, durante dias e dias, até gastar os sapatos que trouxera calçados do palácio. Tinha dinheiro no bolso, comprou botas de andarilho. Assim ficava melhor.
Bebeu água das fontes e riachos, comeu fruta das árvores do caminho, até que chegou, sem saber como, a um vale enevoado, escondido entre duas montanhas tão altas que não seria fácil que o procurassem ali.
É aqui mesmo que fico: pensou, disse, e melhor o fez.
Com os ramos das árvores ergueu uma casa de troncos de madeira. Fez-lhe um tecto de canas de bambú, que depois cobriu com folhas grandes de bananeira. Quando tinha fome ia comendo bananas, um óptimo alimento, que alguns macacos que por ali andavam também gostavam de comer.
Não sei se já disse, o Príncipe agora estava no oriente.
Não havendo mais ninguém a viver à sua volta, o Príncipe não precisava de fazer portas nem janelas.Tudo era, na casa, um belo espaço aberto, onde se sentiria plenamente livre e realizado. A temperatura era sempre amena, só acendia lenha para cozinhar alguma erva, algum legume ou raiz que lhe viesse à mão.
Interrompo oura vez:
Será possível alguém viver só, para sempre, e julgar-se feliz e realizado? Não precisaremos dos outros, do seu olhar, da suas reacções, para percebermos melhor o que somos de verdade, o que fazemos da nossa vida? Não há histórias felizes sem que possamos somar mais alguém e mais alguma coisa à nossa vida.
Continuando, com o Príncipe:
De verdade ele sentia-se bem assim, mergulhado na natureza, naquele vale profundo, de vegetação tropical, abundante, que o escondia por completo.
Não tinha saudades do palácio e ainda menos da agitação barulhenta da cidade de que fugira à sucapa.
Ah, mas sentia falta do canto dos seus pássaros.
Pena que não fossem aves migratórias, para que o pudessem seguir… mas não. Melro é melro, rouxinol é rouxinol, não há nada a fazer. Ficaram lá, com os seus outros companheiros. Os pavões, por exemplo. Mas ele detestava o grito dos pavões.
Teve então uma ideia.
Procurou uma cana com que fez uma flauta.
Ao nascer e ao pôr-do-sol sentava-se junto à casa, tocando as melodias de que se lembrava, algumas de suaves trinados, como os do rouxinol, outras mais complicadas, mas todas do seu agrado, fazendo recordar o seu jardim de outrora.
Reparou que sempre que se sentava a tocar havia animais que se aproximavam dele.
Aranhas, lagartos de várias cores e tamanhos, e um dia até mesmo um morcego gigante que o deixou intrigado. Havia ali morcegos daquele tamanho? Mas não metia medo. Pareceu-lhe apenas curioso, atento, simpático, se é que se pode achar logo simpático um morcego tão grande. Trazia fruta na boca e o Príncipe viu assim que ali naquele vale, para além das bananas que tinha comido, poderia encontrar outras árvores de fruta e outros alimentos. Porque aranhas e lagartos não era coisa de que ele fosse gostar e muito menos comer…
Ah, ficarei aqui para sempre, suspirou.
A menos…
A menos que este morcego não seja um mamífero, mas um demónio encantado, um vampiro sugador de sangue, que esteja a fingir que gosta da minha música mas na verdade deseje apenas morder-me o pescoço e matar-me, quando eu estiver distraído. Aquela fruta na boca pode ser um disfarce…
O Príncipe lembrava-se de ter lido nos livros do palácio, que o Preceptor lhe fazia estudar, que os franceses chamavam aos morcegos ”ratos carecas“ ! Era injusto, era depreciativo.
O morcego que o visitava parecia um rato, mas não era careca. Era um rato voador, embrulhava-se nas longas asas quando queria dormir, sempre de dia, e só à noite a fome e a curiosidade o levavam a grandes passeios pelo vale. Era assim que ele acabava por ir ter com o Príncipe.
Foram ficando amigos, pois também o morcego gostava da casa de madeira com o seu tecto de canas e de folhas e o Príncipe apreciava cada vez mais aquele convívio com os vários bichos que o iam rodeando, ora de dia ora de noite.
As aranhas fugiam dele, escondiam-se nos cantos, aguardando insectos distraídos que pudessem prender nas suas teias; os lagartos eram mais atrevidos, mas o que preferiam era ficar ao sol, a aquecer enquanto o sol não se punha. Esticavam-se ao comprido nas pedras que lhes serviam de cama. Ficavam assim horas, a preguiçar, meio adormecidos.
O Príncipe, com o passar do tempo, habituara-se a fazer longas caminhadas pela floresta, pelo vale, pelos caminhos sinuosos das montanhas que o protegiam do mundo.
Num desses longos passeios descobriu uma aldeia onde só havia uma casa, parecida com a sua, mas com portas e janelas fechadas. Era junto de um riacho onde ele estivera a beber.
À roda da casa havia buganvílias coloridas, muitas, como que a fazer uma coroa de protecção. Lá dentro vivia um casal de velhos. Pareciam ter mais de cem anos, a côr da pele era da côr da madeira da casa, mas o seu olhar não assustava, era doce e amigável.
O Príncipe pensou: será que o morcego, de noite, também os visita, como faz comigo?
Afinal, há só estas duas casas nesta floresta e neste vale imenso…
Os velhos, ao abrir a porta, perguntaram, és tu o Príncipe Feliz? E o Príncipe respondeu: na verdade bem pode ser esse o meu nome. Feliz é como me sinto, só posso ser eu, então.
E assim foi.
O Príncipe lembrou-se de que também nos seus livros do palácio se falava dos morcegos do oriente e de que aí, no oriente, o nome que lhes davam era FELICIDADE. Um oriental nunca ofenderia um morcego com um nome tão humilhante como o do francês, que o deixara chocado pela falta de consideração.
Outras culturas, dissera o Preceptor. Os orientais são muito mais delicados, mais sensíveis.
O Príncipe voltou uma e outra vez, nos seus passeios, a casa dos velhotes, que o recebiam sempre com boa disposição, lhe davam de beber água fresca do riacho, boa fruta, boa comida fresca, preparada de propósito para ele: sopa de legumes, uma ou outra ave selvagem e até, certa vez, guisado de pernas de rã. Mas o Príncipe pediu: só legumes, por favor, a carne não me cai bem, tornei-me vegetariano graças ao exemplo do morcego que me faz companhia.
Conhecem o morcego do vale? perguntou.
Conhecemos, ele também é nosso amigo.
Os velhos tinham realmente mais de cem anos.
Eram velhos e eram sábios, apesar da sua aparente pobreza e humildade. A sabedoria esconde-se de muitas maneiras e, como se diz no refrão, nem tudo o que parece é… Eles na realidade eram pessoas muito especiais, mas não se dava logo por isso, era preciso entrar nos seus segredos, na sua intimidade.
A sabedoria é uma luz que se acende no coração, não tem nada a ver com poderes, riquezas, abundância de luxos exteriores.
É um luxo de dentro, uma espécie de chama dentro da alma.
O Príncipe Feliz, como os velhos lhe chamavam, fizera bem em fugir do palácio na cidade barulhenta, onde já ninguém ouvia ninguém e até o Rei começara a ficar surdo. Por muito que se gritasse ele não ouvia nada.
O morcego do vale gostava especialmente das noites de lua nova. Voava durante mais tempo, saía mais cedo e regressava mais tarde a casa do Príncipe Feliz. Agora era com ele que vivia, fizera da casa de madeira a sua casa, abandonando de vez a caverna escura onde outrora se escondia. Perdera o medo que tinha dos humanos.
O Príncipe gostava da sua companhia, afinal era bom ter companhia, e ele começava a desconfiar que aquele morcego era mais do que isso, havia ali algum mistério que ele um dia havia de descobrir.
Tudo a seu tempo. Tirou a flauta do bolso e começou a tocar e a cantar:
De aranhas não tenho medo
de lagartos muito menos
são discretos
coloridos
comem da minha mão
os insectos preferidos
só o morcego me inquieta
vivendo no meu telhado
quando de noite me espreita
inspirando algum cuidado
com as suas asas negras
de veludo e de mistério
voando pela floresta
até ao romper da aurora:
olha para mim e chora
chora até que adormece!Não sei que fazer com ele
perguntarei aos meus velhos
o segredo que consola.
Foi então que o morcego, certa noite, desdobrando as longas asas de veludo negro, revelou ao Príncipe o seu mistério, a razão das suas lágrimas: não era um morcego, era uma jovem princesa, metida naquele corpo nocturno que assustava tanta gente.
Era bela, não fazia mal a ninguém, embora a ela alguém lhe tivesse feito muito mal. Estar presa naquele corpo era o pior dos castigos.
Foram ambos ter com os velhos, a pedir ajuda. Eles eram sábios, saberiam o que dizer e o que fazer.
Os velhos contaram então a sua própria história, que era muito surpreendente:
O velho tinha sido há muitos e muitos anos um feiticeiro-morcego, vivendo em terras distantes. Apaixonara-se por uma bela princesa que, por amor, acedera a ser também ela transformada em morcego para poder voar com ele.
Mas nem o rei dos feiticeiros nem o rei pai da princesa gostaram daquela união.
Combinaram um castigo que fosse lento e pesado: não teriam herdeiro (que só podia ser rapaz ) teriam só uma filha, e também ela morcego, a menos que alguém a visse e amasse tal qual era.
Quanto ao par desobediente, o feiticeiro e a princesa, só passados cem anos poderiam voltar à forma humana, como a que tinham agora; e de cem em cem anos voltariam a transformar-se, ora em morcegos ora em humanos, e assim por diante, para sempre. Seria este o castigo.
Que estranho, arrepiou-se o Príncipe. E o seu morcego quem era?
Pois era a filha dos velhos, cumprindo a pesada pena de aguardar quem a amasse.
Como seria possível? Poderia ele transformar-se em morcego, ou a morcego-princesa em Princesa de verdade? E por quanto tempo? Cem anos?
A ideia de “para sempre” era algo assustadora.
Mas na verdade, cem anos ou para sempre…
O Príncipe já começara a apaixonar-se por aquela jovem infeliz, que tinha escolhido a sua casa do vale para ter alguma companhia.
Talvez pudessem viver juntos, ser felizes assim, quem pode saber ao certo o que é ser ou não ser feliz? O nome não quer dizer nada.
Como fazer do morcego uma mulher perfeita? perguntou ele aos velhos seus bons amigos. Os velhos prometeram pensar e ajudar, na medida do possível.
O Príncipe que esperasse pela próxima lua nova.
Ele assim fez.
Noites a fio entreteve-se a tocar na flauta as melodias que mais o comoviam. Melodias saudosas, pois a jovem-morcego entretanto nunca mais o visitara. Teria fugido para sempre? Se calhar esperara dele melhores palavras de conforto e de amor, talvez mesmo abraços de paixão. Mas abraçar um morcego… não era fácil, não lhe podiam levar a mal.
Aranhas e lagartos tentavam consolá-lo, enquanto ele tocava.
Mas de pouco servia.
Se o seu nome era Feliz, o dela seria Felicidade, como se dizia no oriente…
FELICIDADE, era isso, devia ter adivinhado logo, exclamado logo, quando ela dissera que era uma princesa aprisionada!
Mas agora repetia vezes sem fim : Felicidade, Felicidade…e iria libertá-la e seriam ambos felizes para sempre. De que modo? Pois logo se veria.
Chegou a noite de lua nova.
O Príncipe lá se pôs a caminho, em passo rápido, sem perder tempo, em busca dos amigos protectores.
Estes já o aguardavam, à porta de casa.
E junto deles a jovem morcego-princesa, ou princesa-morcego, como prefiram dizer.
Felicidade! Felicidade ! exclamou o Príncipe, correndo para ela. Percebi finalmente o que devia fazer! Lembrei-me deste nome, que é o teu, viveremos juntos para sempre.
– Faz falta uma derradeira transformação, Príncipe, disse o velho. Estarás pronto para ela?
– Sim. Sim a tudo o que me for pedido.
– Pois então ouve bem: podemos fazer com que vivas com a princesa, transformado em morcego, como ela, nos próximos cem anos. Acontecerá contigo o que aconteceu connosco, a mim e à minha mulher. Tudo mudando sempre e para sempre de cem em cem anos, nunca depois, nunca antes…
– Sim, sim. Não me arrependerei.
Então, quase ao nascer do sol e antes que Felicidade tivesse de esconder-se de novo, algures na floresta, os velhos foram com o Príncipe Feliz até uma das nascentes mais próximas e ali o despiram, o banharam, o cubriram de seguida com um manto de veludo negro, lhe deram asas e o fizeram voar.
Feliz e Felicidade, assim ficaram a chamar-se os dois jovens morcegos que iriam habitar por mais de cem anos naquele vale profundo da floresta longínqua.
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