DO AVESSO
Henri Bergson, filósofo, enquanto falava no Congresso Descartes, em 1937, pouco antes de mais uma grande Guerra que destruiria uma Europa destruída, sentenciou que é preciso agir como um homem de pensamento e pensar como um homem de ação.Num mundo cheio de cicatrizes como aquele em que se realizava o Congresso, a ideia de circunscrever a ação ao ser humano e ao que de melhor pode produzir, o pensamento, colocava o filósofo francês a um nível político que ainda hoje nos faz estremecer. O nível do ser humano enquanto centro da consciência e da razão de existir.
Bergson era um diplomata, o que significa, um político de mãos amarradas. Mas essa dimensão política impressa na frase que citámos, sendo-lhe essencial podia coibi-lo. Mas não. Abertamente, lançava o desafio: em matéria de ação o pensamento deve ocupar o primeiro lugar. E fazê-lo ao serviço do que é humano.
O filósofo dedicou muita da sua obra à ideia da consciência, da matéria e da memória. Três vértices que então faziam grande sentido no mundo entre guerras – mas que hoje são três tímidas heranças de que nos podemos precaver: o mundo ocidental perdeu a consciência, de si e dos outros; tem o comportamento de um zombie inconsciente que não sabe de onde vem nem para onde vai. Criou como limites da História a semana passada, como grande evento lúdico a noite do dia em que está e não faz o menor plano para o futuro, pois poderá não estar lá para testemunhá-lo. Heranças são inúteis. Projetos são evitáveis. Planos são proibitivos.
No que respeita à matéria, é uma área também muito desinteressante. Basta a ilusão do sentido de posse, para se ignorar a matéria como essência. As últimas décadas criaram esse logro: dentro da ordem do Estado, “devemos” opor aos “totalitarismos” a democracia representativa, que é imperfeita, sem dúvida, mas é de longe a forma menos ruim de poder; dentro da ordem moral, filosoficamente a mais importante, devemos pregar os valores do “mundo livre”.
Sem consciência, nem matéria nem memória
Mas o “mundo livre” é uma grande prisão onde as liberdades vão definhando, criticando as utopias e impedindo-as, circunscrevendo-se a ilusões de economia consumista que destroem recursos a uma velocidade vertiginosa – e sem alternativas.
É então que também cai por terra a terceira preocupação de Bergson: refletir sobre a memória. Não a temos, nem queremos ter. Tê-la é olhar para os últimos cem anos de sangue e de cadáveres. O que ficou do fim dos impérios, as guerras mundiais, a amálgama de sinais contrários dos assassinatos de Estaline e Hitler, mas dos outros todos, sem esquecer Franco e Salazar aqui tão perto. Os genocídios e as matanças coloniais, os milhões de mortos das guerras civis e mundiais pelos quais o nosso Ocidente forjou o seu poder, isto é, de onde resultaram os regimes parlamentares da Europa e da América. Sobre as vítimas, ergueram-se as novas sociedades, que agora tombam.
Vamos em 2018 evocar os 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Um papel amachucado, com algumas ilusões escritas, e a vergonha humana à espera. Ou talvez não. É que , o tempo passa sem nos incomodar demasiado.
Por opção do autor, este artigo respeita o AO90