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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

O muro da hipocrisia

Paulo Casaca, em Bruxelas
Paulo Casaca, em Bruxelas
Foi deputado no Parlamento Europeu de 1999 a 2009, na Assembleia da República em 1992-1993 e na Assembleia Regional dos Açores em 1990-1991. Foi professor convidado no ISEG 1995-1996, bem como no ISCAL. É autor de alguns livros em economia e relações internacionais.

… O que é incompreensível é que a opinião pública europeia (e aqui as redes sociais reflectiram integralmente a comunicação social profissional) se multiplique em inúmeras declarações sobre o folhetim mexicano e faça um total silêncio sobre o muro pago pelo orçamento europeu e feito pela Turquia.

  1. Do drama à realidade

A notícia merece um diminuto espaço no Diário de Notícias de dia 2 de Julho e, curiosamente, tem como fonte a “Organização Internacional das Migrações” que até à recente eleição de Portugal para a sua direcção geral era relativamente pouco conhecida entre nós: duzentos e quatro emigrantes morreram afogados ao tentar atravessar o Mediterrâneo para a Europa só neste fim-de-semana.

São centenas que se juntam a muitos milhares que soçobraram nesta travessia nas últimas décadas, e que se juntam a um número não contabilizado mas que tudo indica que é superior dos que morrem na travessia do deserto, dos que são mortos em inúmeras fronteiras – como no enorme muro turco junto à fronteira com a Síria financiado pelo orçamento europeu – dos que são presos antes de atravessar ou mesmo dos que são remetidos à escravidão num negócio que se tornou cada vez mais importante em países como a Líbia.

Na verdade o drama não é novo nem se limita às fronteiras marítimas europeias. O fenómeno foi especialmente agudo na segunda guerra mundial e manifesta-se um pouco por todo o mundo, desde as costas da Austrália onde iranianos e outros refugiados são remetidos a campos de concentração em ilhas afastadas, às vagas de fugitivos do Sudeste asiático e aos que fogem sobretudo da América Central para os EUA através do México.

As guerras, por vezes catástrofes naturais, a ditadura e perseguição de opositores ou de etnias e religiões, a miséria e por vezes a simples vontade de ascender a um mundo melhor, levam as populações a fugir.

É claro também que muitas migrações se fazem de forma agressiva e com o espírito de ocupação, como também é verdade que outras se fazem por puro espírito de aventura e de descoberta de novos horizontes.

A realidade é normalmente feita de uma composição de vários destes elementos, não sendo aconselhável metê-los a todos no mesmo caldeirão.

Os portugueses têm sido particularmente activos no domínio migratório, e por motivações diversas, como têm também sido resultado de múltiplas migrações, desde as do tempo da “reconquista” e das cruzadas aos do Império, até mesmo aos da actualidade em que por razões diversas acolhemos significativas comunidades estrangeiras, por exemplo, de ucranianos ou de bengalis.

  1. Como olhar para o fenómeno?

Começando pelo fim, creio que seria dramático que ninguém quisesse imigrar para o nosso país, e o mesmo princípio de resto se aplica – com naturais diferenças – às deslocalizações internas, porque isso quereria dizer que a nossa realidade não despertaria nenhum interesse ao resto da humanidade.

Posto isto, é natural que tão pouco queiramos ser invadidos, ou que se possam vislumbrar limites à capacidade de integração. Sendo certo que estamos perante realidades propícias à cultura de psicoses colectivas, temos de ter em conta que não temos todos de ter a mesma atitude perante o fenómeno, em especial uma atitude dogmaticamente ditada por cartilhas de correcção social,

Para o entender, nem é necessário olharmos para o movimento “populista” que varre o Ocidente, basta vermos o que se diz a propósito de uma pretensa invasão da baixa lisboeta pelos turistas que teriam levado ao êxodo dos alfacinhas, que reflecte a mesma obsessão xenófoba que procura ver noutros as razões dos nossos problemas.

Citando de cor as estatísticas, Lisboa perdeu quase metade dos seus habitantes em menos de cinquenta anos, a partir de meados do século XX. Eu, com os meus 4 a 5 anos, no princípio da década de sessenta, acompanhava semanalmente a minha mãe a uns chás em que ela participava com umas senhoras mais idosas do que ela que viviam na Rua da Conceição. Era assim que eu ia regularmente à baixa lisboeta e ficava horrorizado com aqueles vetustos prédios, vários em ruínas, todos a precisar de remodelação urgente, aquelas lojas que pareciam doutro tempo e as gentes que eram quase todas idosas.

A velha Lisboa desertificou-se por razões que nada têm a ver com o turismo e bem pelo contrário foi o turismo que a fez rejuvenescer.

Posto isto, é claro que as coisas não são sempre iguais independentemente do ponto em que são vistas. Para quem quiser morar em Lisboa, mesmo se é verdade que a baixa da cidade se encontra renovada, é claro que agora se paga muito mais do que se pagava antes. Terminou o regime de condicionamento das rendas, feito pelo salazarismo mas continuado pela democracia, enquanto os poderes públicos não respondem ao incremento da procura com um urgente programa de construção de habitação.

Para a economia nacional, a chegada de imigrantes vindos de ambientes de grande pobreza e dispostos a trabalhar duramente por remunerações que são para nós miseráveis mas para ele muito superiores ao que conheciam, pode ser um grande estímulo, mas é evidente que para um trabalhador indiferenciado, isto se repercute numa ameaça clara aos seus rendimentos.

Quer portanto isto dizer que não é boa política ignorar as razões subjectivas ou objectivas que podem estar por trás da resistência à migração – seja por turistas seja por trabalhadores – e pior ainda é juntar a indiferença à arrogância das lições de moral de quem por uma razão ou outra não é afectado pelos fenómenos sobre os quais prega.

Acima de tudo, e para quem quer que tenha um mínimo de valores humanistas, é absolutamente intolerável que se ergam muros, se dispare, se deixe morrer quem foge da guerra da perseguição e da fome e é fundamental não deixar que este estado de coisas se torne na regra. Pior do que isso, é fazer de conta que o problema não é nosso mas é só dos outros, e é isto que me parece especialmente lamentável no que se passa entre nós.

  1. A projecção no outro

O actual Presidente norte-americano faz parte da mesma onda populista que é hoje claramente maioritária no Leste da EU; que fez o Brexit; que ganhou as eleições italianas e que pode fazer cair o governo alemão a qualquer momento.

Num estilo vernáculo típico do populismo, o presidente norte-americano tem-se esforçado por dar uma imagem de grande dureza em relação à migração, imagem que foi crucial para a sua vitória eleitoral.

Por essa razão, não só não se demarcou, mas chamou mesmo a si os louros de políticas como as da proibição genérica de vistos a naturais de países onde floresce o jihadismo (ou mesmo a quem passe por esses países) ou as da prisão automática de quem tenta passar ilegalmente a fronteira (e com a separação dos progenitores dos menores para estes não ficarem sob prisão) apesar de se tratar de iniciativas do poderoso departamento do interior e segurança que já existiam na administração anterior.

Na verdade, acabou por ter de recuar no seu apoio explícito a essa política, dando uma ordem executiva para acabar com essa separação das crianças dos seus pais pelo facto de mesmo a primeira-dama ter vindo a público condenar essa separação.

O mesmo acontece em relação ao muro com o México, que como qualquer pessoa minimamente informada sabe, existe há já muitos anos em grande parte da fronteira. Donald Trump, em vez de discretamente ter deixado que continuasse a sua construção, como fizeram os seus antecessores, resolveu reclamar a sua construção e pagamento pelos vizinhos mexicanos, e agora pelas autoridades federais supostamente equilibrando as contas com supostos lucros da política comercial proteccionista com o México.

Tudo isto é interessante, sobretudo do ponto de vista da comunicação política, agora o que é incompreensível é que a opinião pública europeia (e aqui as redes sociais reflectiram integralmente a comunicação social profissional) se multiplique em inúmeras declarações sobre o folhetim mexicano e faça um total silêncio sobre o muro pago pelo orçamento europeu e feito pela Turquia.

Enquanto no México há problemas graves mas não há um governo que bombardeie populações civis – incluindo com armas químicas – e os guardas fronteiriços americanos, por piores que sejam, têm instruções estritas de não disparar sobre civis desarmados, é isso o que se passa na Síria e na fronteira desse país com a Turquia.

Com a comédia mexicana, trata-se de utilizar os problemas dos outros para esconder os que se têm; trata-se de pura hipocrisia política; trata-se ainda de pensar que a retórica pode substituir a realidade ultrapassando os problemas, quando a primeira condição para que os problemas possam ser resolvidos é assumir que eles existem.

O resultado da ausência de estratégia política para os nossos vizinhos do Sul, da política de apaziguamento com ditadores sanguinários e com a teocracia iraniana que alimenta as várias guerras civis na região, traduz-se em refugiados que as nossas instituições europeias apenas procuram que se mantenham longe, atrás de muros, gaseados, baleados ou afogados, pouco interessa.

Não haverá solução duradoura para esta crise que salvaguarde os nossos valores humanistas sem fazer frente às limpezas étnicas, sociais ou religiosas e sem investir no desenvolvimento sustentável que mitigue os enormes desequilíbrios humanos que nos rodeiam e, sobretudo, sem acabar com a hipocrisia como guia de acção política.

É isto que temos de entender aqui e agora.

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