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Sábado, Novembro 2, 2024

O nacional-benfiquismo

Mendo Henriques
Mendo Henriques
Professor na Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa

Quando Artur Semedo faleceu em 2001, o técnico encarnado Toni – desde Salazar que não se chama vermelhos aos lampiões – teve esta frase lapidar: Os benfiquistas e os portugueses perderam um vulto da cultura e um homem que fez do Benfica uma religião .

Aqui começa o nacional-benfiquismo: na redução do desporto à bola e na elevação da bola a liturgia. Uma religião do sucesso, antes de mais. Dizem os números que o Benfica ganhou mais campeonatos de futebol que os outros clubes durante o Estado Novo, mas também durante os anos 70 e 80, após o 25 de Abril. Um passado de glória, um futuro de vitória, diz o lema que talvez passe para o Euro 2016.

Nacional-Benfiquismo é o Benfica ser o clube europeu com maior percentagem de adeptos no próprio país, segundo a UEFA. Fala-se de 4 a 6 milhões. Para as teorias da conspiração tipo Bolinha, o Benfica é clube do poder desde que Salazar aproveitou a composição multiracial para propaganda e proibiu Eusébio  de envergar pelo Milano e pelo Inter. Não adianta mostrar fotos da equipa a fazer a saudação fascista (o Sporting e o Porto também) e dizer que estava ligada ao regime (o Sporting muito mais). Até fazia eleições democráticas portas adentro, na antiga senhora.

O que conta é que o futebol em geral, e o Benfica em particular, tomaram conta dos portugueses na sociedade de informação, ainda com mais virulência do que no Estado Novo. Atente-se bem: agora há Champions, TV’s cabo, 11 estrangeiros por equipa, transferências milionárias, dezenas de programas de comentários, apitos dourados, sociedades desportivas, claques, hooligans, a Bola, Record, CM, CMTV e TVI em constantes referências ao glorioso. E só agora os sportinguistas acordaram para o domínio já enfrentado pelos portistas de Pinto da Costa.

Bispo-Benfica

Acresce que o futebol é a única actividade social de massas em que os portugueses estão realmente organizados. Cá dentro do país, com milhares de equipas, dezenas de torneios, e recintos para todos os gostos a começar pela “Catedral” da Luz; há media desportivos que escrutinam tudo, dentro e fora dos estádios. Três jornais diários. Comentadores a dar com um pau. Noticiários a abrir com a bola. Lá fora, os jogadores milionários, os treinadores de escol, os clubes nos rankings na UEFA.

Com tudo isto, não estou a partilhar o lamento do intelectual Teixeira de Pascoaes que culpava o tiro aos pombos, o futebol e o ateísmo de serem forças dissolventes da alma portuguesa. Como muitos outros, aprecio o espírito de equipa, a competitividade, o exercício físico, o tirar das misérias os “quaresmas”, as academias de futebol. Muita estética existe no jogo e alguma nos estádios. Sobretudo, o futebol dá alegrias a um país que já não acredita em nada, sobretudo na sua classe política.

E, pormenor pessoal, tal como 99% dos portugueses, também eu joguei futebol. Talvez devesse dizer “até eu joguei futebol”. Defesa-esquerdo, caneleiro e fraquinho, numa das equipas do Externato Marista. Vi um só desafio, o Portugal-Rússia, no José Alvalade. Assisti a inúmeros jogos na televisão. Joguei o futebol de praia e de quinta com os meus filhos e familiares. Joguei em professores contra alunos e, na fase da barriga a crescer, até arbitrei entre equipas da universidade.

Agora, nacional-benfiquismo é querer curar os males da nação com os bens do Benfica. A promiscuidade entre futebol e política até foi mais forte noutros países e épocas. Mas que uns ocupam-se em enganar e os outros em iludir, servindo-se do país, ai isso ocupam-se! É o pão e circo. Falta o pão? Dêem-lhes circo, como se fez em Bizâncio no ano de 500 d.C, quando as bigas verdes, vermelhas, brancas e azuis disputavam a vitória com o apoio de clientelas. Até revoluções começaram em estádios  no tempo do imperador Justiniano (que era dos azuis).

O nacional-benfiquismo consiste numa paranóia emocional de grau socialmente aceitável. É comum na prosa lírico-asfáltica da imprensa desportiva. Às vezes, tem recorte literário acima da média. Como escreveu o sr. Joel Neto no romance sobre o futebol: Os Sítios Sem Resposta, 2012: Nenhuma literatura alguma vez fez isto por mim. Nenhuma poesia, nenhuma arte, nenhuma filosofia. Fê-lo o futebol. A boa notícia é que ele conhece literatura, arte e filosofia. A má notícia é que dele se apoderou a religião do futebol de um modo tão avassalador que tudo deita abaixo.

Não. O problema não é a política, nem o dinheiro, nem os árbitros, nem a cultura, mesmo que com K, ou soletrada pelo Jorge Jesus. O problema do nacional-benfiquismo é deixar que a indústria do espectáculo da bola – com tudo o que uma indústria tem, desde os estádios aos off-shores – se tenha apoderado do espírito desportivo, do exercício sadio, da competição entre clubes, até ao ponto de monopolizar energias e servir de sentido da vida. Afinal, um reflexo da sociedade neo-liberal. Os jogadores milionários são bons com os pés. Mas tal como se diz ne sutor ultra crepidam poder-se ia afirmar, digo eu, ne lusor ultra caligam. O mercado das transferências é dos mais opacos que nós conhecemos.

A indústria do nacional-benfiquismo faz mal ao mundo com a sua paranoia emocional? Eu creio é que faz mal aos adeptos, desmobilizando-os de lutar por outras causas que não sejam a religião da “catedral da luz”. Amanhã há jogo? Vem aí o 35º? Então não há problemas!

Dito isto, espero não ser assaltado na rua.

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