A dramática realidade dos serviços de saúde no nosso país, tanto públicos como privados, é que as práticas gestionárias vivem alheadas do mundo que se move à nossa volta.
O bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães, na sessão da sua tomada de posse há cerca de dois anos, afirmou que um dos vários objetivos do seu segundo mandato seria desencadear o processo que conduzisse à elaboração de um novo relatório sobre a carreira médica em Portugal face ao agravamento de múltiplos problemas que já então suscitavam preocupações crescentes.
Passados poucos meses convidou um grupo de colegas de diversas especialidades e de diversas zonas do país para constituírem a respetiva comissão de redação.
Nesse sentido, foi desenvolvida uma abordagem relativa a áreas fundamentais como: formação médica; a qualidade da prestação dos cuidados e concursos; incentivos à fixação dos médicos; o SNS e os outros serviços de saúde; a gestão das unidades de saúde.
Desde a divulgação em 1961 do “Relatório sobre as Carreiras Médicas em Portugal”, houve alguns, poucos, registos escritos da evolução da profissão médica e das instituições de saúde.
Nas últimas décadas, a acumulação de problemas estruturais e a ausência de políticas viradas para uma coerente dinamização dos serviços públicos de saúde, conduziu à situação atual, com fortes elementos caracterizadores de uma rotura de consequências imprevisíveis, tal como já se tinha verificado em anteriores períodos críticos.
O setor da saúde apresenta particularidades quase únicas como o facto de estar em funcionamento contínuo todas as horas dos dias e todos os dias do ano, bem como estar confrontado com uma permanente incorporação tecnológica e um impetuoso e contínuo desenvolvimento dos conhecimentos científicos e técnicos.
Como sabemos, mostra a experiência histórica que qualquer setor sujeito à incorporação de novas tecnologias tem de acompanhar essa situação em permanente mutação com a adoção de novas formas de organização do trabalho e dos modos de produção.
No nosso país, a dramática realidade dos serviços de saúde, públicos e privados, é que as práticas gestionárias vivem alheadas do mundo que se move à nossa volta.
Se há aspeto que é forçoso reconhecer, é que os médicos sempre tomaram a iniciativa de trazer a público os seus problemas profissionais e os problemas de funcionamento dos serviços.
E no caso do relatório na década de 1960, quando o fizeram, sublinharam de forma exaustivamente fundamentada a íntima relação entre o desenvolvimento contínuo da qualidade do seu exercício profissional com o desenvolvimento humanista da prestação dos cuidados de saúde e da garantia de acesso sem quaisquer discriminações sócio-económicas, de raça ou religião.
O citado relatório de 1960, foi a semente lançada que veio a germinar na criação, mais tarde, do Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Com a apresentação pública desse relatório, nada ficou como dantes e o seu impacto político, mesmo em tempo de ditadura, foi enorme.
A elaboração deste novo relatório, também em tempo de crise, para além de registar por escrito toda a evolução da situação profissional dos médicos e da realidade dos serviços de saúde com os respetivos enquadramentos legais, apresenta também diversas propostas de solução para desencadear uma discussão inadiável em torno de soluções que garantam a manutenção de uma medicina de elevada qualidade e a existência de serviços de saúde adequados às necessidades assistenciais dos cidadãos.
Simultaneamente, foi realizado um inquérito sobre as condições laborais e de condições de trabalho dos médicos com milhares de respostas.
Mais uma vez, os médicos tomam a iniciativa de colocar à discussão os problemas que a todos preocupa.
É com este tipo de atitudes éticas e humanistas que uma classe profissional se prestigia e ganha o respeito dos cidadãos.
Os médicos só existem como classe profissional porque existem doentes e doenças.
Dentro de algum tempo, a Ordem dos Médicos irá proceder à publicação do relatório.
O contributo deste novo documento não pode ser ignorado pelo poder político se o objetivo dele for, de facto, recuperar a saúde e o SNS como um dos pilares do Estado Social e também um elemento de garantia da coesão da nossa sociedade.