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João de Sousa

Domingo, Agosto 25, 2024

O novo Serviço Nacional de Saúde

João de Sousa
João de Sousa
Jornalista, Director do Jornal Tornado

João de Sousa

O “utente” (ex-paciente, ex-doente) entrou no hospital pelo serviço de Urgência com sinais de avançada desidratação e evidente debilidade.

Quis o destino que nesse dia, a essa exacta hora, a equipa responsável pela Triagem de Manchester fosse constituída por “humanos”. Sem fitas, os enfermeiros de serviço, independentemente da cor da fita, encaminharam-o de imediato para o Balcão das Urgências, onde a maioria dos Clínicos, Internos, protagonizava a personagem do “médico que segue escrupulosamente o Protocolo”, garantia, sobretudo jurídica, de que nenhuma pergunta ficaria esquecida, de que todos os standards seriam cumpridos ao menor detalhe.

Entre estes, o destaque principal vai para a pergunta típica sobre a “receita-cocktail” da medicação habitual do “utente”, bem como para eventuais doenças crónicas, previamente diagnosticadas, que tenham de ser levadas em conta na terapia (s) a utilizar: incompatibilidades, efeitos secundários, etc.

Tudo isso foi feito com grande competência e determinação. Toda a informação relevante ficou “residente” no sistema informático do Hospital. De resto, já lá morava, fruto de “visitas” anteriores.

Uma vez admitido no Balcão principal, o “utente” foi rapidamente prognosticado: tinha uma bactéria. Tratava-se, como tal, de usar outros meios complementares para proporcionar um diagnóstico seguro e uma terapêutica adequada. Afinal, a unidade “avariada” do sistema, tinha apenas 52 anos e, a par, reunia as necessárias credenciais de formação, geral e específica, que o qualificavam como “tratável”, isto é, útil à organização da produção e ao funcionamento do sistema, grosso modo.

12177188_10207256258182192_1801261580_oDo Balcão para o SO (Serviço de Observação) foi um pequeno passo e, mais uma vez, este “utente” teve sorte: o médico que lhe calhou era mesmo um Médico, experiente, que, suspeitando de uma determinada bactéria mandou realizar um pacote de “análises” geral e uma “análise” específica para procurar aquele que, do seu ponto de vista, seria o provável agente da infecção.

Bingo! Acertou em cheio. A bactéria em causa (Clostridium difficile) era a razão de todos os sintomas, a saber: desidratação, paragem renal, colapso iónico – de magnésio, potássio e sódio – qualquer deles potencial gerador de efeitos fatais como, por exemplo, enfarte do miocárdio, entre muitos outros, todos deveras desagradáveis para o “utente”, garanto-vos.

O experiente Médico encaminhou este paciente, como faz sentido, para a Unidade de Cuidados Intermédios. Nesta unidade existe, aproximadamente, meio enfermeiro por doente e a vigilância é exercida de forma continuada.

Desde a entrada do “utente” no Serviço de Urgência, decorreram apenas 16 horas. Tudo bem até aqui, portanto. À hora das visitas aparece uma médica que, depois de expulsar as visitas do espaço reservado ao doente, se vira para ele e lhe transmite, sem mais prolegómenos: “cá pra mim você perdeu os rins e vai ficar internado muito tempo”…

Em “estado de choque”, o paciente balbucia, entre dentes: “mas… eu não posso… sou precário… quando não trabalho não ganho… e tenho responsabilidades”. A isto a médica respondeu… nada! “Pois é assim mesmo, aguente! Vou mandar transferi-lo para uma enfermaria da Medicina e, amanhã, venho conversar mais demoradamente consigo”, rematou ela.

Poucas horas volvidas, o paciente foi transferido para a Medicina. Para quem não sabe, a Medicina é uma espécie de antecâmara da morte. Nela coabitam doentes quase vegetativos, com outros vítimas de AVC (e que são para deixar morrer), e ainda com alguns vítimas das infecções bacterianas consideradas menos graves.

Médico “virtual”, racionamento e “processamento de doentes”

Em isolamento parcial, este “utente” ficou, grosso modo, entregue aos cuidados dos enfermeiros. Para tudo há rotinas: os doentes são mais ou menos irrelevantes no processo. O sistema está montado como se de uma indústria se tratasse: os agentes são meros “colectores” de algo, a fazer lembrar a metodologia dos CSI.

Todos os dias, à mesma hora, entram as auxiliares da recolha da urina, depois as da recolha das fezes, depois o técnico da colheita de sangue, depois o/a enfermeiro/a para medir a temperatura, pressão arterial e níveis de glicemia; nesse ínterim entregam a medicação da manhã; depois chega a auxiliar com o pequeno-almoço; a meio surgem de novo as auxiliares e enfermeiras (os) para lavar e mudar a roupa das camas dos quase-vegetais; por fim aparece uma senhora muito sorridente e simpática com as propostas de “ementa” para o dia seguinte.

É este o ciclo matinal, diário, inexorável, stressante pelo menos para aqueles que não estão em estado vegetativo. Os resultados das “análises” e os valores dos “sinais” apurados pelos enfermeiros são então lançados na base de dados do sistema informático do hospital pelos respectivos “agentes” que os recolheram. São “as provas” que o médico irá comparar com as tabelas de valores definidos como “normais”. É nessa amálgama que o Médico procura a informação, comparativa, que fundamenta as suas decisões: os níveis de potássio estão abaixo do valor de referência? Administre-se potássio através do “acesso” à disposição no doente. O magnésio está abaixo dos valores standard? É para isso que há uma veia canalizada. Use-se! A temperatura está alta? Paracetamol intravenoso. E soro, muito soro, para hidratar, e oxigénio, se a oximetria assim o aconselhar, à descrição.

Negligência? Não há! Desde que se cumpram os “protocolos”

O nosso “utente”, internado na Medicina, fica à mercê dos procedimentos do pessoal. E o melhor para ele, caso saiba o que é bom para a tosse, é manifestar-se pouco. Cada uma das personagens elencadas acima detém a sua pequena dose de “poder” e, por isso, é uma mera questão de sorte, de “graxa” e de “humanidade” e empatia, sobreviver à experiência.

Todos, mas mesmo todos, estão em condições de retaliar em caso de queixa por parte do doente. De resto, e como observou a médica quando interpelada sobre esta questão: “agora está a atacar a minha equipa. E eu tenho de a defender – o meu serviço é o que tem o número mais baixo de reclamações”.

Pudera! Como não? Se metade dos doentes são vegetativos e a outra metade receia represálias de onde viriam as reclamações?

Hipócrates, Nightingale e neoliberalismo

Claro que, médicos e enfermeiros, fizeram os seus respectivos juramentos. Mas, qual o valor actual de tais profissões de Fé quando o Sistema lhes exige que racionem os gastos com cada doente em função de parâmetros determinados, tais como: idade, situação no processo económico, custos para o Estado?

Contribui ou recebe? Eis a questão que verdadeiramente interessa aos neoliberais. Se contribui merece ser “reparado”. Se recebe, quanto mais cedo deixar de ser uma parcela na rubrica “custos” do orçamento, tanto melhor. Os Juramentos que se lixem.

E, no caso que estamos a analisar, foi exactamente assim que a médica responsável procedeu. Esse doente ainda pode vir a ser uma peça útil do sistema? Ok, vamos tratá-lo. Ah, espera, mas ele traz um quadro crónico prévio? Uma prescrição anterior associada a esse quadro crónico? Oh, Diabo! Isso não dá jeito nenhum à beleza dos números que temos de apresentar… aqueles números que nos permitem receber prémios de “produtividade”. Ok, vamos ignorar o quadro clínico de patologias “crónicas”, e a inerente terapia, e concentrarmo-nos na razão específica que o trouxe cá.

Passaram 2, 3, 4 dias desde aquela “conversa” da médica com o doente. Aquela em que a médica disse: “já venho falar consigo”. Que sucedeu à médica, sumiu? Não sumiu, pelo contrário, apareceu todos os dias para dizer ao paciente, en passant, “já venho falar consigo”. Nunca chegou a aparecer.

Na verdade, ela estava a seguir a história daquele doente através da informação lançada diariamente no sistema informático pelos “colectores” de informação: tantos litros de urina, esta e aquela característica nas fezes, temperatura tal, pressão arterial isto e aqueloutro, glicemia assado. E depois, havendo uma tabela de parâmetros com que comparar estes valores, para quê falar com o doente? Que informação poderá ele transmitir, com interesse, que não esteja reflectida nestas belíssimas tabelas?

Claro que o nosso doente crónico – de diabetes e hipertensão – passados 4 dias se ressentiu da abstinência forçada da sua medicação habitual. Na sua “dieta” diária hipotensora havia mesmo um princípio activo que exige desmame: um betabloqueante. Ao 4º dia de internamento, à noite, o paciente esperou pacientemente, como lhe cumpria, pela enfermeira que vinha medir os “níveis” e administrar a medicação de antes de dormir. Pela experiência, sabia à saciedade que iria falhar, por muito, no teste da pressão arterial. A enfermeira chegou, mediu e apurou os seguintes valores de pressão arterial: sistólica – 21, diastólica – 11.

O doente do caso que vimos seguindo olhou para a enfermeira e perguntou-lhe: “que pensa fazer, Sra. Enfermeira? Vai deixar-me assim ou tomar medidas como, por exemplo, dar-me a minha medicação, apurada ao longo de anos, em conjunto com o meu cardiologista, pelo método tentativa-erro? A Sra. Enfermeira não pode prescrever, como tenciona resolver a situação a esta hora?”

E, sem lhe dar tempo para responder, o doente acrescentou: “A única solução que estou a ver é a Sra. Enfermeira aparecer aqui dentro de 5 minutos, com o único médico de serviço aos internados do hospital. Caso contrário, sairei daqui por aquela porta, para dar entrada pelo Serviço de Urgências, vestindo o pijama do Hospital. Claro que, neste caso, amanhã de manhã, entrará o meu advogado pelos vossos serviços jurídicos para notificar os advogados do hospital do processo-crime, por negligência culposa, que lhes irei mover”.

Escusado será dizer que, em menos de 5 minutos, apareceu a médica de serviço e prescreveu a medicação “crónica” que, por razões de custos, estava a ser sonegada ao nosso doente há 4 dias. No dia seguinte a médica continuou sem aparecer mas enviou uma embaixadora: no caso uma finalista do 6º ano do curso de medicina. A ideia era “amaciar” o estado de espírito do nosso utente, por uma razão prática bastante fácil de entender – era o dia da visita semanal do Director do Serviço, acompanhado por um significativo número de finalistas do curso de Medicina!

À guisa de conclusão

Na conversa derradeira com esta médica, que trata doentes via computador, o nosso doente deixou-lhe o seguinte pensamento para reflexão:

“Um destes dias, um paciente seu morrerá a jogar PlayStation. A consola ter-se-á apercebido entretanto que a Dra. gosta de números actualizados na base de dados dos doentes. E, por essa razão, servindo-se do esqueleto remanescente, continuará a usar a rede do Hospital para lhe fornecer números, dentro dos parâmetros uns, fora outros, para que a Dra., que nunca o viu, possa continuar a exercer aquilo que acha que é a sua profissão.”

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