A morte do líder do Estado Islâmico pelas forças especiais norte-americanas é um facto de extrema relevância para o combate ao Jihadismo, como já tinha sido a morte de Bin Laden em 2011, embora não necessariamente como previsto, dado que o desaparecimento de Bin Laden facilitou a cisão da Al Qaeda e a expansão territorial do ISIS.
Independentemente da eliminação de Al Baghdadi vários sinais recentes apontam para um declínio da capacidade de mobilização do Jihadismo paralelamente à sua mobilização por lógicas imperialistas.
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Ásia do Sul
Em artigo que publiquei no ‘New Delhi Times’ expliquei por que razão penso que o Ocidente menorizou a importância da Ásia do Sul no desenvolvimento do moderno jihadismo.
Em primeiro lugar, o Ocidente percebeu as implicações do fenómeno tardiamente, na senda de um artigo seminal de Bernard Lewis, ‘O regresso do Islão’ editado em 1976. Bernard Lewis, falecido em 2018, foi um intelectual de primeira, talvez o principal orientalista.
Em segundo lugar, Bernard Lewis, como de resto a generalidade do Ocidente, esteve sempre mais preocupado com o islamismo no Médio Oriente do que na Ásia do Sul.
Para o Ocidente o jihadismo egípcio aparecia como preocupante por se desenvolver às suas portas e se assumir claramente como antiocidental, enquanto o jihadismo na Transcaucásia e na Ásia Central era visto como força positiva que iria pôr em causa a União Soviética e o da Ásia do Sul era visto ou como algo que só deveria preocupar os indígenas e que, indirectamente, seria também útil para conter a União Soviética e o nacionalismo do terceiro mundo.
É por essa razão que é sempre dada mais atenção ao ramo egípcio do que ao ramo indiano daquilo que se veio a tornar na rede internacional da ‘Irmandade Muçulmana’. Conceptualmente, creio que se trata de um erro, porque um texto como ‘O Islão e a Jihad’ do então indiano Maulala Ala Maududi (fundador do Jamaat-e-Islami, JeI) é mais importante para a compreensão dos fundamentos do moderno jihadismo do que toda a literatura de Sayyid Qutb ou qualquer dos outros ícones da Irmandade Muçulmana egípcia.
Geopoliticamente, também me parece claramente um erro. O Islão da Ásia Central e mesmo na Ásia do Sul tem uma forte tradição sufista, ou seja, de um Islão nos antípodas do jihadismo. É uma tradição que provavelmente não era propícia ao lançamento da Jihad antissoviética, mas o problema, é que a Jihad não é especificamente antissoviética, é antitudo o que lhe possa fazer concorrência, e obviamente anti-ocidental em primeiro plano.
Se antes do 11 de Setembro a falta de entendimento sobre este tema poderia até certo ponto compreensível, depois, disso, é indesculpável. A verdade é que, perante a evidência dos perigos colocados pelo Jihadismo, o Ocidente continuou e continua cego, acreditando nas mais ridículas efabulações, como as de talibans moderados que se poderiam mesmo separar da Al Qaeda se lhes fosse pedido para isso, ou de uns jihadistas apenas anti India e interessados só no Cachemira.
Se na Ásia Central o refluxo do jihadismo já tinha começado há bastante tempo, o que me parece agora extremamente interessante é a progressiva incapacidade do Jihadismo para se impor no Afeganistão, no Cachemira ou nas zonas tribais paquistanesas.
A etnia Pashtun, maioritária no Afeganistão, nas antigas zonas tribais e em partes importantes do Norte paquistanês iniciou há dois anos uma revolta contra os Talibã e os seus patronos dos serviços secretos paquistaneses pondo de rastos o mito alimentado por estes de que o Jihadismo seria oriundo do sentir profundo das tribos Pashtun.
Essa revolta, iniciada no Paquistão, está progressivamente a propagar-se no Afeganistão, com os afegãos a distanciar-se cada vez mais das redes terroristas alimentadas pelo Paquistão e pelo Irão, e isto apesar da contínua deriva diplomática ocidental que parece mais interessada em agradar aos promotores do terrorismo do que dialogar com as populações.
No Cachemira, após uma enorme campanha feita a propósito de uma mudança constitucional, em que o Primeiro-ministro paquistanês chegou a ameaçar com a guerra nuclear, a revolta da população do Cachemira sob controlo paquistanês, num movimento secular, parece ser o resultado inesperado da movimentação paquistanesa.
A grande fronda internacional lançada pelo Paquistão contra a Índia foi recebida de forma glacial pelos Estados muçulmanos, tendo apenas os países alinhados com a Irmandade Muçulmana (Malásia, Turquia, Qatar, Gaza sob o Hamas, Trípoli na Líbia) e o Irão saído em sua defesa, com o Reino Unido a dar apenas conforto moral.
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Mundo árabe
Mas é no mundo árabe que a mudança é mais óbvia. Na Tunísia, os islamistas são claramente derrotados, embora seja verdade que o vencedor, apresentando-se como laico, tem um discurso e um programa de pendor fascista, tal como a Irmandade Muçulmana. Na Líbia, a milícia que controla Trípoli é sustentada em financiamento e armamento pelo Qatar e Turquia e resiste dificilmente aos seus opositores laicos. Nos regimes autoritários laicos – como a Argélia ou o Egipto – os islamistas não controlam nem sequer têm uma presença significativa nos protestos populares e, talvez o elemento mais significativo, seja a revolta aberta dos países colonizados pela teocracia como o Líbano ou o Iraque, mandando às malvas a suposta obediência aos líderes religiosos.
O principal argumento do Jihadismo, a luta em nome do Islão, não consegue já ser o motor do que quer que seja de popular no mundo árabe, que olha cada vez mais para ele como o problema e não como solução.
Estou em crer que esta crise aberta do fanatismo islâmico no mundo árabe se faz também sentir entre a população emigrada que cada vez mais ignora a propaganda fanática ou se afirma mesmo contra ela.
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Os novos impérios
A Turquia, em comunhão com o Qatar, é hoje a grande protagonista do Jihadismo promovido pela Irmandade Muçulmana, juntando à religião um discurso de nostalgia imperial num projecto político de restauração do Califado hegemonizado pela Turquia.
Depois de experimentar a primeira significativa derrota política, perdendo as eleições nas duas principais cidades turcas, Erdogan conseguiu ver o seu projecto expansionista na Síria aprovado pela teocracia iraniana e pelo presidente russo na cimeira de Ancara de 16 de Setembro enquanto o Ocidente se mostrou incapaz de tomar uma posição clara e sólida.
A prospeção de gás pelas autoridades turcas em águas cipriotas e a publicação simultânea pelo Ministro da Defesa turco de mapas imperiais de uma Turquia englobando áreas significativas dos seus vizinhos da União Europeia não pode deixar de ser lida como o prenúncio de mais expansionismo.
Nada houve de mais importante para a transformação de um movimento identitário baseado na religião num poder de Estado com ambição de se transformar no império dominante no mundo do que a Revolução Islâmica Iraniana.
O Irão controla já hoje um Império que se estende do Índico ao Mediterrâneo e está presente de diversas formas no resto do mundo. Visto de forma benevolente pela Rússia e pela China enquanto potência que mais afronta os Estados Unidos, começa hoje a confrontar-se com revoltas nos países onde exerce um controlo mais apertado há mais tempo, o Líbano e o Iraque, que se juntam assim à profunda impopularidade do regime entre os iranianos que já é antiga mas que se tem agravado.
Simultaneamente rival e aliada do projecto da Irmandade Muçulmana, a República Islâmica do Irão espera apenas que os EUA acabem por ceder às suas imposições, como o têm feito sistematicamente no passado.
Baseados em cálculos e visões lineares do Xiismo versus Sunismo, os observadores ocidentais nunca entenderam que a posição aparentemente minoritária do Xiismo no Islão de modo algum é um obstáculo intransponível ao sucesso do projecto iraniano, algo que seria mais óbvio se conhecessem com mais rigor e de forma mais independente a sulfurosa história do Islão e das suas incontáveis dissidências e reencontros.
Tal como aconteceu com outros projectos imperais – como o do comunismo soviético – o apelo ideológico do Jihadismo parece estar esgotado, o que não quer dizer que o projecto não prossiga, agora mais baseado em argumentos de força e de dinheiro, na determinação e na sua capacidade estratégica que parecem faltar ao Ocidente.
Do ponto de vista dos impérios jihadistas como o Irão ou a Turquia, grupos com alto grau de autonomia estratégica como o ISIS são uma faca de dois gumes. Por um lado, permitem-lhes protestar inocência pelo terror que provocam no Ocidente mas por outro não obedecem às suas prioridades. Tudo indica que a decapitação do ISIS vai tornar o vasto manancial de guerra do grupo terrorista mais fácil de utilizar pelo imperialismo jihadista.
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