As propostas apresentadas por Sérgio Moro e assinadas por Jair Bolsonaro passam longe das causas da criminalidade.
O pacote John Wayne. Eis uma boa definição para o “pacote anticrime” apresentado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, assinado pelo presidente da República, Jair Bolsonaro. Moro separou a proposta em três projetos, um deles exclusivo para o “caixa dois”. O ministro disse, num exercício retórico de difícil compreensão, que “caixa dois não é corrupção”. “Existe um crime de corrupção e existe um crime de caixa dois. São dois crimes. Os dois crimes são graves”, tentou explicar.
Há verdade nessa afirmação, mas não coerência do autor. Até hoje não se sabe como essa contradição foi encaminhada na Operação Lava Jato, que se utilizou fartamente do argumento de “caixa dois” em processos de campanhas eleitorais para acusar, julgar, condenar e prender. Ao que consta, esse “crime” deveria ser inicialmente apurado pela Justiça Eleitoral. Fora do âmbito da luta política, há o “caixa dois” da sonegação fiscal, bem conhecido, que abastece o mercado da evasão de divisas e lavagem de dinheiro.
Até onde se sabe, o “pacote anticrime” de Moro não fez essa distinção e, consequentemente, não indicou qual punição deve ser aplicada em um e outro caso — o “caixa dois” eleitoral e o da sonegação fiscal. Do mesmo modo, a proposta de combate à corrupção, pelo que foi divulgado, não chega à raiz dos crimes das corporações privadas, as conhecidas operações financeiras obscuras e fraudulentas que, conforme dados da Receita Federal, opera a máquina que produz, a cada dólar arrecadado em impostos, outro sonegado. Estima-se que do total de contribuintes mais endinheirados a quantidade que declara sua renda deve representar entre 40% e 50%.
Situação do Fisco
Há ainda os mecanismos legais que isentam os ricos do pagamento de impostos, como a Lei 8200, de 1991, que permitiu a correção monetária das despesas nos balanços dos bancos, mas não fez o mesmo com as receitas. Boa parte dos dólares aplicados por investidores estrangeiros no país seria de brasileiros. O dinheiro, depositado em paraísos fiscais, retorna sob a forma de investimento em ações e em aplicações de renda fixa, sem identificação do titular da conta, e sai sem pagar imposto algum. As empresas estrangeiras registram o capital que investem no país como empréstimos feitos pela matriz para poder remeter os juros às matrizes sem pagar Imposto de Renda.
O “pacote”, pelo que foi divulgado, nada fala da situação do Fisco, que sofreu um sério desmonte na “era neoliberal” do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (FHC) e precisaria para passar por uma recomposição para voltar a ser um instrumento de defesa de quem cumpre com suas obrigações. Para se ter uma ideia, em 1969, quando o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro era de US$ 160 bilhões, o órgão contava com 12 mil fiscais, segundo a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Evasão, de 1996. Atualmente, são cerca de 8 mil.
Cidades do Velho Oeste
O terceiro ponto do “pacote”, o combate ao “crime organizado” e à “criminalidade comum” — chamada por Moro de “crime violento” —, sempre com base no que foi divulgado, também passa longe do cerne do problema. Nesse item pulsa forte a lógica do xerife que era tudo nas cidades do Velho Oeste norte-americano, como mostram os filmes de bangue-bangue. É a ideia de que no meio dos antros de marginais e desesperados, só mesmo alguém como o velho e bravo John Wayne para garantir a ordem, a única forma de lidar com a violência.
Esse conceito abre caminho para o aumento da violência policial, já absurdamente alto, com o recurso de nome “excludente de ilicitude” (possibilidade de redução ou isenção de pena de policial que mata em situações de enfrentamento). Há ainda o agravante do “plea bargain”, instrumento jurídico adotado nos Estados Unidos que serviu de base para a controvertida “delação premiada” amplamente utilizada na Operação Lava Jato, que elimina recursos processuais, além de servir à coação.
Desempenho brasileiro
Falta, nessa concepção, prioridade para os investimentos em policiamento, melhora no sistema judiciário, reformas no sistema penitenciário e mudanças estruturais na política de segurança pública. A situação caótica dos complexos penitenciários e o crescente sentimento de insegurança nos maiores centros urbanos confirmam que, sem dúvida, reformas estruturais são necessárias.
Em primeiro lugar, é fundamental entender o que faz do crime e da violência problemas tão críticos no Brasil, quando países com níveis semelhantes de desenvolvimento econômico não sofrem tão agudamente desses males. E que não haja dúvida em relação ao fato de que, realmente, este é um país extremamente violento. Estima-se que em São Paulo algo em torno de 50 homicídios por ano são registrados para cada 100 mil habitantes. É um número próximo dos 60 registrados em Bogotá, numa Colômbia propagada como um antro de violência, inclusive política.
Quando comparado ao dos vizinhos mais próximos geográfica e economicamente, o desempenho brasileiro é ainda mais constrangedor: na Argentina são registrados cerca de 20 homicídios para cada 100 mil habitantes, enquanto para os chilenos esse número fica em torno de 5. Os custos sociais desses altos índices de criminalidade vão muito além da já considerável perda de bem-estar causada pelo medo e pela mudança de hábitos da maior parte da população.
Custos superlativos
Os custos sociais gerados pelo crime também são superlativos. Alguns “especialistas” chegam ao ponto de calcular o custo do crime no Brasil — estimado em 10% do PIB. Entram nessa conta também dados como gastos excessivos em segurança privada e no sistema penal, vidas perdidas, sofrimento de vítimas, potencial humano desperdiçado em prisões e patrimônios destruídos. A pergunta que imediatamente vem à mente é: o que faz do Brasil um país tão violento? Ao contrário do que se pode pensar, a resposta fácil “subdesenvolvimento e pobreza”, usada tantas vezes para justificar as mais diversas mazelas da realidade brasileira, não se aplica nesse caso.
Estudos mostram que o número de crimes não apresenta nenhuma relação significativa com desenvolvimento econômico. Um fator que aparece como extremamente importante nesses estudos é a desigualdade de renda. Países com distribuição desigual de renda tendem a ter níveis altos de criminalidade e violência. Explicações sociológicas e antropológicas são as justificativas mais populares para a relação entre crime e desigualdade, mas a teoria econômica oferece uma ligação simples e direta entre esses dois fenômenos.
Para a população mais pobre, aquela com maior probabilidade de se engajar em atividades ilegais, maior desigualdade de renda significa maior retorno financeiro e menor custo de oportunidade para o envolvimento em ações criminosas. O que significa, em última análise, mais crimes. Nesse sentido, o fato de o Brasil ser um dos países com maior desigualdade de renda no mundo, só ficando atrás de alguns poucos muito pobres, certamente contribui para os níveis de criminalidade.
Discurso de Lula
Se a desigualdade no Brasil fosse reduzida para o nível de países como o Chile, o número de homicídios para cada 100 mil habitantes cairia em quase 40%. E mais: se a desigualdade fosse reduzida até o nível de países como a Inglaterra, o índice diminuiria em mais de 55%. Essa equação poderia ser resolvida se o problema fosse visto com olhos conscientes e socialmente críticos nas ruas de muitas cidades, mesmo de pequeno porte, onde a cada passo, em cada esquina, se vê um cenário de desrespeito aos mais elementares direitos humanos. Em lugar desse olhar, entram vozes que propagam a falsa tese de que as “autoridades” não estão fazendo nada.
A verdade é que instrumentos legais para coibir delitos não faltam. O Código Penal, a Lei das Contravenções Penais e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente preveem penalidades variadas para uma série de infrações. O problema não está aí, como diagnosticou o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em seu discurso de posse em 2003: “É verdade que a deterioração dos laços sociais no Brasil nas últimas duas décadas decorrentes de políticas econômicas que não favoreceram o crescimento trouxe uma nuvem ameaçadora ao padrão tolerante da cultura nacional.”
Segundo ele, “crimes hediondos, massacres e linchamentos crisparam o país e fizeram do cotidiano, sobretudo nas grandes cidades, uma experiência próxima da guerra de todos contra todos”. O presidente anunciou a decisão de colocar o governo federal em parceria com os Estados “a serviço de uma política de segurança pública muito mais vigorosa e eficiente”. “Uma política que, combinada com ações de saúde, educação, entre outras, seja capaz de prevenir a violência, reprimir a criminalidade e restabelecer a segurança dos cidadãos e cidadãs”, disse.
Política penitenciária
No seu famoso livro “Estudios Penitenciarios”, a espanhola Concepción Arenal, falecida em 1893, afirma: “Não há criminosos incorrigíveis, mas incorrigidos”. Ela reitera a clássica doutrina da Metanoia (transformação de comportamento ou de carácter, mudança resultante de arrependimento ou conversão espiritual), responsável pela substituição da pena corporal (forca, açoites etc.) por privação de liberdade. Graças a esse conceito, conferiu-se uma finalidade ética à pena, que consistia na emenda do preso. Emenda por meio da compunção, da reflexão isolada, feita em cela do penitenciário. Daí a importação para o mundo laico do termo penitenciária. Ou seja: antigo lugar de penitência em face da conduta desviante.
No Brasil, a doutrina da Metanoia e o pensamento de Concepción Arenal foram prestigiados a partir da Constituição de 1946. Assim, a pena privativa de liberdade, além da sua natureza retributiva (retribui o ato anti-social praticado pelo criminoso), passou a ter finalidade ética de emendar, ressocializar o condenado. A verdade é que no sistema penitenciário brasileiro ninguém se emenda. Ou melhor: os maus-tratos, antítese da condição necessária para a reeducação, tornaram-se regra nos presídios.
Com isso, sempre aumentou o percentual de reincidência entre os egressos do sistema prisional nacional. Em São Paulo, é superior a 80%. Só esse dado indica o desvio da finalidade das prisões. A política penitenciária brasileira diariamente afronta o objetivo constitucional da pena. Favorece-se a lei do mais forte e as permanentes violações de direitos humanos. Numa radiografia: Estado desorganizado de um lado e presos organizados do outro. A troca sempre imperou entre os bandos e as autoridades penitenciárias. Não ocorrendo rebelião, vale tudo dentro das prisões. Com o crescimento do fenômeno da criminalidade organizada, os bandos passaram a controlar o sistema. E, não raro, o “crime organizado” usa nas ruas o difuso poder de intimidação.
Viver com dignidade
Outro problema é que a lei, no Brasil, sempre esteve a serviço de quem detém o poder econômico. De um lado, o Brasil ainda é o país da impunidade para quem goza de alguma influência econômica — e Miami continua sendo uma boa alternativa de exílio para muitos fora-da-lei bem posicionados. De outro lado, o Brasil é ainda o país da tortura medieval para quem não tem onde se socorrer.
Como resultado, está disseminada pela sociedade a noção de que a lei não é igual para todos, de que a Justiça não é justa e de que a melhor maneira de se relacionar com a polícia no país é manter-se à distância. Contribuem para isso as notícias de que a polícia destrói provas importantes com a mesma facilidade com que planta outras falsas, de que agentes da lei sabem bater na exata medida em que não sabem investigar.
É claro que os desafios à frente são complexos. Faltam políticas sociais adequadas para prevenir e lidar com o problema do menor carente, falta destinar dinheiro para treinar e aparelhar melhor a polícia, falta um Judiciário ágil para julgar e sentenciar os infratores. Mas falta, sobretudo, condições políticas para enfrentar a questão, erigindo um ambiente social que permita a todo ser humano viver com dignidade.
por Osvaldo Bertolino | Texto em português do Brasil
Exclusivo Editorial PV / Tornado