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Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

O pai da cunha

Paulo César
Paulo César
Professor e escritor galardoado.

Na sala, enquanto o ranger da porta era anulado pelo estrondo do seu fecho, o último a entrar dirigiu-se para o seu lugar. “Cunha?”, “Joana Cunha?”, virando o pescoço de um lado para o outro, “A Cunha ainda não chegou.”, disse a Ribeiro, Joana Ribeiro, “A  Cunha ainda não chegou?”, voltou ele, “A Cunha está atrasada, mas chega sempre.”, disse a Mota, Joana Mota, “Alguém sabe porque motivo se atrasa a Cunha?”, “ A culpa não é da Cunha.”, “Não é da Cunha?”, “Não, a Cunha nunca falha, é pontualíssima, cumpre sempre as regras.”, disse a Morais, Joana Morais, “Então, se não é da Cunha, é de quem?”, “É do pai.”, atirou outra Joana, a Silva, Joana Silva,  “Do pai?”, “Sim, do pai da Cunha.”, “E quem é o pai da Cunha?”, “Ninguém sabe.”, “Ninguém sabe?”, “Sim, ninguém sabe. A Cunha é sempre a última a chegar e nunca ninguém viu ou soube quem era o pai da Cunha.” Logo de seguida, uma outra, pelos vistos jovem adolescente que sonhava aparecer na televisão no sábado ou domingo à tarde a esticar as pernas para a frente revelando um calção de licra que lhe tapava o local onde também deviam estar cuecas e a rodopiar sobre si, com os cabelos a baloiçarem como um carrossel de cadeiras suspensas, revelando nesse movimento circulatório uma mini-saia esvoaçante que deixava divisar meio glúteo tonificado ou preso ao corpo por meias de vidro, começou a cantar “Mas quem será… mas quem será… o pai da Cunha? Eu sei lá, sei lá, eu sei lá, sei lá…”. Foi para a rua e “Aproveita e vê se descobres quem é o pai da Cunha.”, disse ele, menos irritado do que divertido, mas não poderia agir de outra forma.

A cunha em Portugal é como o pai da Cunha: todos sabem que existe, mas nunca sabem ou viram quem fecundou a cunha e a fez ver a luz.

O Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, também reconhecido mundialmente por ser o autor da famosa letra de uma música de G-Eazy, “Me, myselfie and I”, veio publicamente, utilizando o espaço mediático que canais televisivos lhe oferecem como mel para as moscas (acho que é mel…), refutar qualquer intervenção da sua livre iniciativa no processo de favorecimento na atribuição do medicamento Zongelsma para a atrofia muscular espinhal no valor de dois milhões de euros a cada uma de duas crianças gémeas portuguesas, filhas de uma luso-brasileira, que haviam recentemente obtido a cidadania portuguesa e que tinham ainda conseguido seis cadeiras de rodas, quatro delas eléctricas, num custo para o SNS de cerca de sessenta e quatro mil euros (o que eu acho bem, para elas e para qualquer pessoa que necessite). Segundo o ex-comentador da TVI, depois das insinuações sobre o seu alegado envolvimento numa reportagem daquele canal (“Da TVI? Da TVI?” pensou o fotogénico Presidente, “Como é possível? Depois de tudo o que eu fiz pelas audiências do “Jornal Nacional”, “Como é possível?”, indignadamente pensando, sem se lembrar que a Sandra Felgueiras tinha sido corrida da RTP por denunciar os abusos da exploração das minas de Lítio aquando da gestão do processo por um tal ex-secretário de Estado na altura e ex-ministro agora que dá pelo nome de João Galamba, também mundialmente conhecido por inspirar o mundialmente famoso guião do filme de Natal “Christhmas in pijama walking the dog” e por ter inspirado a cadeia de roupa interior Oysho a criar um pijama especial, numa campanha intitulada “Compre um pijama Galamba e adote um cão, caramba!” (só para o Norte ) e “Pijamba Galamba: na rua como em casa” (para o resto do país) e que, agora é arguido no Processo do lítio e do hidrogénio, acusado de crimes de prevaricação, de corrupção activa e passiva de titular de cargo político e de tráfico de influência. A Sandra mudou de estação de televisão, mas parece ver antes do tempo o que ainda ninguém tinha visto), ele mandara abrir uma investigação conduzida pela Casa Civil que provou que ele, Marcelo, apenas havia recebido uma mensagem de correio electrónico do seu filho, Doutor Nuno Rebelo de Sousa (achei muito estranho que ele e a sua esposa de então tenham dado como primeiro nome ao seu filho o nome Doutor, mas, pronto, serão manias de burguesia rural de Celorico de Basto  que confirmam, também, que quem nasce em berço de Doutor inevitavelmente será Doutor), solicitando intervenção do papá Marcelo (ou do Presidente, isso não foi possível aferir a partir da sua comunicação), no caso que viria a ser conhecido como a das Gémeas, para que houvesse alguma palavrinha do papá Presidente que permitisse abrir as portas do Sistema Nacional de Saúde (que se deveriam manter abertas através da colocação de uma cunha de madeira na base da porta aberta) com via verde para o acesso ao tratamento privilegiado de que as meninas gémeas precisavam, nem que para isso fosse necessário passar por cima da lista de espera como se fosse um camião todo o terreno com rodas do tamanho daquelas que vemos em determinados camiões americanos. Parece que, segundo Marcelo, o papá nem respondeu ao e-mail, o que me parece uma decisão vergonhosa e inadmissível por parte de um pai, nem que o mesmo seja Presidente. Não responder ao filho Doutor Nuno Rebelo de Sousa envergonha qualquer pai bem formado e bem educado e, apesar de ser Marcelo o presidente dos afectos,  percebe-se  que o excesso de afectuosidade nesta fase da sua vida se deve não a um genuíno esforço de ser agradável, mas, antes, a uma necessidade de compensar o distanciamento e o frio afectivo com que ainda hoje trata o seu filho Doutor Nuno (e continuo a achar que não faz sentido… Doutor Nuno… que maldade, podiam ter-lhe chamado Pedro Nuno ou José Nuno ou, enfim, na continuidade de legado da burguesia rural, chamarem-lhe, em homenagem a Camilo Castelo Branco, Simão Nuno ou Domingos Nuno). De qualquer forma, crendo em absoluto nas palavras do doutor de leis José Miguel Júdice, proferidas no seu espaço de comentário na Sic Notícias, “Causas” (e não se pense que José Miguel Júdice pretende ser Presidente da República, pois, apesar da Clara de Sousa fazer muito bem o papel de Judite de Sousa, o seu comentário “toute à droite, sempr’en frent” não tem a visibilidade de um comentário em horário nobre ao domingo à noite), Marcelo é um “gajo” que conhece há mais de quarenta anos totalmente honesto e que seria incapaz de um acto vergonhoso como aquele que lhe era imputado, no máximo, digo eu a partir das palavras do doutor de leis, Marcelo seria capaz de meter uma cunha nos sapatos por causa de bicos de papagaio nos pés ou por causa de uma tendinopatia num dos tendões de Aquiles (pois é, grande verdade, todos temos tendões de Aquiles, até Presidentes da República, e, por vezes, há por aí jornalistas armados em Páris que carregam uma aljava com flechas prontas a disparar).

O tempo passa e o assunto vai sendo repisado como as uvas num lagar sem que ainda haja vinho de boa qualidade. As insinuações continuam, as pesquisas jornalísticas chafurdam em qualquer lugar onde cheire a vil cunha, mas ainda não se sabe ao certo como se deu o favorecimento das gémeas filhas do casal amigo do Doutor Nuno e da sua esposa. Para mim, o pai da cunha é Marcelo Rebelo de Sousa, porém apenas e só considerando que a cunha é o Doutor Nuno. Na verdade, o verdadeiro pai da cunha é o Doutor Nuno, faltando apenas saber quem é a mãe da cunha que permitiu, num acto de cópula cunhista fecundadora, que mais uma cunha nascesse e visse a luz do tráfico de influências, do compadrio e do amiguismo enquanto berrava em surdina para que ninguém desse conta do seu nascimento e da ultrapassagem na lista de espera. A mãe da cunha pode ser o ex-Secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales, a ex-Ministra da Saúde, Marta Temido, os responsáveis pelos Hospitais D. Estefânia e Santa Maria, entre outros que ainda podem aparecer, mas ninguém duvida que, se há cunha, haverá sempre um pai e uma mãe.

Agora, vou sentar-me no sofá e ver as bailarinas das bandas pimba. Parei na TVI, está a dar o “Somos Portugal” e parece-me que conheço uma bailarina, mas não sei donde, e o som começa a entrar-me pelos ouvidos enquanto observo quatro bailarinas vestidas com um top de pouco tecido e muita pele à mostra, calções de licra branca bem apertados para que nenhum tecido adiposo pareça existir. É uma versão de uma música bem conhecida e agora o vocalista pimba está a cantar isto :“Mas quem será… mas quem será… a mãe da cunha? Eu sei lá, sei lá, eu sei lá, sei lá…”

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