A Iniciativa OBOR (One Belt, One Road), também conhecida como Nova Rota da Seda, foi divulgada no segundo semestre de 2013 pelo presidente chinês Xi Jinping. Trata-se do mais ambicioso projeto chinês para alavancar sua inserção internacional. Como destaca Yiwei (2016), este projeto oferece alternativas ao estilo de globalização conduzida pelos EUA considerada por ele insustentável.
Indiferente às retóricas oficiais, é inquestionável que esta iniciativa chinesa tem potencial para reordenar a Eurásia e a configuração de forças do sistema internacional. Apesar das contradições que separa discurso das práticas e as intenções das realidades, também parece plausível sugerir que a estratégia de inserção da China difere daquela adotada pelos EUA. Além de buscar lançar luzes sobre estas problemáticas de fundo, o presente artigo pretende compreender como a diplomacia chinesa tem buscado articular a Iniciativa OBOR à sua política africana. Em suma, trata-se também de compreender como o renascimento da Ásia, tendo a China em seu epicentro, está a influenciar a transição sistêmica (Arrighi 2008, 17).
Para tanto, na primeira seção do artigo apontamos alguns elementos centrais da inserção internacional chinesa, progressivamente mais assertiva. Na segunda, explicamos as características da Nova Rota da Seda, bem como as capacidades e os objetivos que permeiam sua implantação. Terceiro, retomamos alguns aspectos importantes da política africana da China para compreender, por fim, como a África enquadra-se na dimensão marítima da Nova Rota da Seda.
China: da reconstrução nacional à assertividade global
A Nova China surgida da revolução de 1949 lançou as bases para um multifacetado e sinuoso processo de reconstrução nacional. A primeira geração de dirigentes liderada por Mao Tsé-tung tornou o país independente, retomou a integração territorial, lançou os alicerces da indústria de base e da infraestrutura física (transportes, comunicação e energia). A segunda geração, tendo à frente Deng Xiaoping, lançou a política de Reforma e Abertura em meados dos anos 1970, retomando o processo acelerado de desenvolvimento, internalizando tecnologia, diminuído o atraso em relação aos países desenvolvidos e criando novos padrões institucionais para o país. A terceira geração, sob a coordenação de Jiang Zemin (1993-2003), teve o desafio de resistir à conjuntura decorrente do colapso do campo soviético e ainda dar continuidade e aprofundar tais políticas iniciadas por Deng.
A partir do século XXI com a quarta geração de Hu Jintao (2003-13) e a quinta de Xi Jinping (2013-…), a inserção internacional chinesa ganhou novos contornos. Como destaca Visentini (2011, 131), se a consolidação da Nova China representou a recuperação de sua soberania e o lançamento das bases do desenvolvimento nacional, a Novíssima China pós-Reformas começa a transformar o próprio sistema mundial. Os desafios da China são complexos, pois o país depara-se com as contradições do mundo Pós-Guerra Fria e o envelhecimento do capitalismo contemporâneo em seus centros históricos.
Com o fortalecimento chinês, o país passou a exercer maior protagonismo junto às organizações internacionais. O ingresso na Organização Mundial do Comércio em 2001 e o maior peso junto ao FMI são ilustrativos. Da mesma forma, tem sido notável a liderança chinesa dos processos de integração regionais. Assim, como destaca Zhao (2013), a diplomacia chinesa ficou mais assertiva, deixando de lado a política externa de baixo perfil de Deng, sobretudo em temas cruciais dos seus interesses nacionais, como bem ilustra a presença na África e o envolvimento securitário no Mar do Sul da China. A China tem criado condições objetivas e subjetivas para desenvolver uma diplomacia multilateral ativa, deixando de ser um simples participante para ser protagonista e assumir grandes responsabilidades (Tianquan 2012, 182).
Nessa direção, a assertividade e o ativismo no espaço regional é precondição para sua consolidação como potência mundial. Daí a importância de conduzir e liderar os processos de integração regionais, direcionados tanto para o Pacífico (ASEAN Plus Three e Regional Comprehensive Economic Partnership também chamado de ASEAN+6) e para a Eurásia (Organização para a Cooperação de Xangai). Com efeito, a Nova Rota da Seda Continental e Marítima (One Belt, One Road) lançada pelo governo chinês visa dar base física e argumento político para integrar toda a Eurásia. Ou seja, se fortalecem os argumentos a favor de que a China está reconstituindo um sistema sinocêntrico (Pautasso 2011).
Assim, é nítido que a China tem buscado lançar discursos voltados a legitimar sua ascensão. Primeiro, surgiu o conceito de Ascensão Pacífica, cunhado por um proeminente membro do Partido Comunista da China, Zheng Bijian, em 2002. Foi cunhado também como resposta aos recorrentes argumentos de ‘ameaça chinesa’ ou ‘colapso da China’. O conceito foi rejeitado, entre outras razões, porque provocava desconfiança nos países vizinhos em razão da noção de ‘ascensão’. De acordo com Tianquan (2012, 188), o Relatório do 17° Congresso do Partido Comunista Chinês em 2007 adotou a ideia de Desenvolvimento Pacífico e Mundo Harmonioso.
Já em 2004, um britânico, Joshua Ramo, passou a falar no Consenso de Beijing. Com ele, a China tem apresentado um caminho alternativo baseado tanto no reconhecimento das necessidades locais do desenvolvimento de cada país, quanto no reconhecimento do multilateralismo e na cooperação como forma de construir uma nova ordem mundial (Arrighi 2008, 383). Embora não tenha sido cunhado pela elite chinesa, o fato é que o modelo chinês, com forte atuação do Estado no desenvolvimento e baseado nos históricos Cinco Princípios de Coexistência Pacífica (1955), é percebido como diferente – e até divergente – da supremacia neoliberal consagrada no Consenso de Washington e do intervencionismo dos EUA.
Recentemente, a elite chinesa tem enfatizado a ideia de Sonho Chinês. Este é concebido como o rejuvenescimento do país, a revitalização e a renovação da sua civilização, para promover a transformação da civilização humana, e materializar o desenvolvimento. O sonho chinês está entrelaçado à ‘agenda dos dois centenários’ (criação do Partido Comunista Chinês em 2021 e da proclamação da República Popular da China em 2049) que determinam os horizontes da construção de um país e de uma sociedade modestamente confortáveis.
Está claro, pois, que a China está buscando conceitos e formatos capazes de dar identidade à inserção internacional do país. Reagindo a conceitos como os de “ameaça chinesa” e proporcionando alternativas aos padrões de governança liderados pelos EUA e seus aliados europeus. Não se trata, contudo, de uma disputa de conceitos; a trajetória da China tem estado em contraste com a do Ocidente. Como sublinha Losurdo (2016), na China, o Estado de Bem-Estar Social está em construção, com os sobressaltos e desafios de um país continental e de mais de 1,3 bilhão de habitantes, com ampla mobilidade social e ampliação da classe média, além do recuo das desigualdades regionais. No Ocidente, ao contrário, os direitos sociais estão em vias de desmantelamento, enquanto as polarizações social e regional crescem. Assim, o desenvolvimento é um imperativo para a legitimidade do regime, para a soberania nacional e para a inserção internacional autônoma do país asiático (Losurdo 2016, 343).
A política chinesa da Nova Rota da Seda
Depois de apresentada por Xi Jinping em 2013, a Nova Rota da Seda ganhou um documento elaborado pelos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e do Comércio e pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma cujo título era Vision and Actions on Jointly Building Silk Road Economic Belt and 21st-Century Maritime Silk Road[1]. O documento enfatiza que há mais de dois milênios atrás as pessoas integraram civilizações da Ásia, Europa e África através da Rota da Seda. Segundo o governo chinês, a Nova Rota da Seda busca os seguintes elementos da cooperação: a coordenação das políticas, a conectividade entre instalações, o comércio desimpedido, a integração financeira e o intercâmbio de pessoas. Para tanto, os objetivos são alinhar e coordenar as estratégias de desenvolvimento desses países; criar demandas e oportunidades de emprego; promover confiança, paz e prosperidade. O plano deixa claro a disposição do governo chinês em arcar com mais responsabilidades e obrigações dentro das suas possibilidades e de promover os Cinco Princípios de Coexistência Pacífica. Segundo o documento, a Nova Rota subdivide-se no Cinturão Econômico ligando a China-Ásia Central-Rússia-Europa (Báltico); e a Rota Marítima, projetada para ir da costa da China para a Europa através do Mar do Sul da China e do Oceano Índico em uma rota, e da costa da China através do Mar do Sul da China para o Pacífico Sul na outra (Figura 1).
Figura 1 – Cinturão Econômico da Rota da Seda e Nova Rota da Seda Marítima
Fonte: Resource Reports
O projeto da Nova Rota da Seda está estruturado em 6 corredores: Corredor Econômico China-Mongólia-Rússia, Nova Ponte de Terra da Eurásia, Corredor Econômico China-Ásia Central, Corredor Econômico China-Península Indochinesa e Corredor Econômico Marítimo. Esse processo de integração envolveria cerca de 65 países e 63% da população mundial de três continentes (Ásia, Europa e África). A ideia é o rejuvenescimento e a integração da Eurásia, a região que Mackinder havia chamado de World Island, envolvendo diversas civilizações (chinesa, árabe, persa, indiana, bem como as diversas religiões, dos islâmicos aos cristãos) e sem replicar o modelo expansão e colonização adotado pelas potências ocidentais (Yiwei 2016, 187-188).
A estratégia chinesa da Nova Rota da Seda parece bem concebida pois se baseia em explorar as principais capacidades à disposição do país asiático. A primeira delas é a capacidade produtiva chinesa, o que inclui uma gigantesca indústria de base: a produção de aço é ilustrativa, pois a China terminou 2014 com uma produção de quase 823 milhões de toneladas, contra 110,7 do Japão e 88,3 dos EUA[2]. A outra é a sua enorme infraestrutura portuária, com 7 dos 10 maiores do mundo[3], e nada menos que 21 das cem maiores construtoras do mundo (sendo ainda 8 japonesas e 7 estadunidenses, para ilustrar)[4]. Por fim, a China tem mobilizado a sua capacidade financeira para impulsionar a integração concebida pela Nova Rota da Seda. Ressalte-se a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, o estabelecimento de instituição financeira da Organização para Cooperação de Xangai, o Fundo Rota da Seda e dos bancos chineses de fomento. Ou seja, tal capacidade financeira serve tanto para alavancar sua inserção internacional quanto para pressionar a emergência de uma nova arquitetura financeira e geoeconômica em âmbito global.
Dessa forma, a Nova Rota da Seda articula três objetivos fundamentais do governo da China, como sua capacidade econômica, suas estratégias de política externa e suas reservas financeiras. Esses três objetivos se entrelaçam com a conformação de uma nova arquitetura financeira e geoeconômica. Primeiro, o governo chinês vem sinalizando, desde a crise de 2008, a necessidade de superar as vulnerabilidades de uma economia global ancorada em uma moeda nacional (dólar) e pressionando para que sua divisa fizesse parte da cesta de moedas do FMI – como ocorreu a partir de 2016, quando o yuan passou a representar 10,92% dessa cesta atrás do dólar (41,7%) e do euro (30,9%) e à frente da libra (8,1%) e iene (8,3%)[5]. Segundo, com a iniciativa do grupo BRICS que redundou na criação do Novo Banco de Desenvolvimento e do Acordo Contingente de Reservas na sua 6ª Cúpula em Fortaleza, em julho de 2014[6]. Terceiro, com a ampliação do papel chinês como financiador de obras no mundo através do Banco de Desenvolvimento da China (CDB) e do Eximbank, criados em 1994 como bancos estatais de fomento. Quarto, o crescimento dos investimentos externos diretos (IED) e os contratos da China[7] – o que explica a vertiginosa ampliação do número de empresas chinesas na lista das 500 maiores da Fortune para 106 empresas em 2015[8]. Quinto, o governo criou um sistema internacional de pagamento (China International Payment System-CIPS) em outubro de 2015[9] – alternativo ao tradicional domínio ocidental do SWIFT (Society for the Worldwide Interbank Financial Telecommunication). Assim, o governo chinês trabalha para a “desdolarização” global e a internacionalização da sua moeda, o yuan, buscando ampliar sua autonomia do mercado financeiro centrado nos EUA/ União Europeia. Em suma, a dialética entre poder e capital tem estruturado o sistema internacional contemporâneo e, portanto, vale para compreender como a hegemonia dos EUA foi constituída a partir de Bretton Woods, mas também para refletir sobre a sinalização de importantes mudanças que vêm ocorrendo no plano internacional (Pautasso 2015).
E o que poderia fazer a Iniciativa OBOR viável? Primeiro, não se trata de complexos arranjos institucionais de integração que pressupõe grandes concessões e consensos. Segundo, se viabiliza a partir de um interesse objetivo e quase irrecusável dos países por infraestrutura. Terceiro, viabilizada a obra, a partir das capacidades à disposição da China (indústria de base, engenharia, financiamento, etc.), enraízam-se os fluxos comerciais que permite o exercício do poder gravitacional de sua economia. Por fim, o poder econômico cria condições para o exercício de um poder político e, com efeito, os meios para deslocar progressivamente a supremacia dos EUA ao integrar a Eurásia.
[2] Ver notícia do Valor “Produção global de aço cresce 1,2% no mundo e cai 0,7% no Brasil”
[3] Ver ranking no site World Shipping Council
[4] Ver ranking das grandes construtoras mundiais
[5] Ver reportagem do Estadão “Entrada do yuan na cesta do FMI ocorrerá em outubro de 2016
[6] Ver nota publicada pela embaixada chinesa no Brasil “Premiê chinês pede que EUA aprovem reforma de cotas do FMI” de 31/03/2015
[7] Ver estudo detalhado China Global Investment Tracker em “The Heritage Fundation”
[8] Ver notícia do China Daily “More Chinese firms in Fortune 500”
[9] Ver notícia da Russia Today “China launches global yuan payment system”