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João de Sousa

Sábado, Dezembro 21, 2024

O paradoxo de Oppenheimer: ciência versus complexo militar

O novo filme blockbuster Oppenheimer trouxe de volta as memórias da primeira bomba nuclear jogada em Hiroshima, Japão. Ele levantou questões complexas sobre a natureza da sociedade que permitiu tais bombas serem desenvolvidas, usou-as, e estocou arsenais que podem destruir o mundo por muitas vezes.

A infame era McCarthy e a caçada por vermelhos em todos os lugares tem relação com a patologia de uma sociedade que suprimiu sua culpa sobre o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki e a substituiu por uma crença em seu excepcionalismo?

O que explica a transformação de Robert Oppenheimer, que emergiu como um “herói” do projeto Manhattan que construiu a bomba atômica, para um vilão, e então para uma figura esquecida da história?

Eu me lembro do meu primeiro encontro com a culpa americana sobre as duas bombas atômicas jogadas no Japão. Eu estava participando de uma conferência sobre controles de computador distribuídos, em Monterrey, Califórnia, em 1985, e nossos anfitriões eram o Lawrence Livermore Laboratories.

Esse foi o laboratório de armas que tinha desenvolvido a bomba de hidrogênio. Durante o jantar, a esposa de um dos cientistas nucleares perguntou ao professor japonês na mesa se os japoneses entendiam porquê os americanos tiveram que jogar a bomba no Japão.

Ela perguntou se eles compreendiam que isso salvou a vida de um milhão de soldados americanos? E as de muito mais japoneses?

Qual era o propósito dela? Ela estava procurando por absolvição para a culpa que todos os americanos carregam? Ou ela estava procurando confirmação para o que tinha sido dito a ela, e que ela acreditava ser verdade? Essa crença era mesmo compartilhada pelas vítimas da bomba?

Não apenas no nível da guerra, onde essa nova arma mudou os parâmetros completamente. Mas também no modo no qual a bomba provocou o reconhecimento na sociedade que a ciência não era mais preocupação só dos cientistas, mas de todos nós.

Para os cientistas, também foi o momento no qual eles não podiam mais ter qualquer dúvida sobre se o que eles faziam nos laboratórios tinha consequências no mundo real, incluindo a possível destruição da própria humanidade. Isso também trouxe que essa era uma nova era, a era da grande ciência que precisava de muitos dólares.

Estranhamente, dois dos principais nomes de cientistas no centro do movimento antibomba nuclear após a guerra também tinham um papel importante em iniciar o Projeto Manhattan.

Leo Szilard, um cientista húngaro que tinha se tornado um refugiado, primeiro na Inglaterra, e então nos Estados Unidos, procurou a ajuda de Albert Einstein para peticionar o Presidente Franklin Roosevelt para os Estados Unidos construírem a bomba. Ele tinha medo que se a Alemanha nazista construísse primeiro, Hitler conquistaria o mundo. Szilard se juntou ao Projeto Manhattan, embora ele não estivesse locado em Los Alamos, mas nos Laboratórios Metalúrgicos da Universidade de Chicago. Szilard fez campanha dentro do Projeto Manhattan para uma demonstração da bomba antes de seu uso no Japão.

Einstein também tentou alcançar Roosevelt com seu apelo contra o uso da bomba. Mas, antes que ele pudesse fazer isso, Roosevelt morreu, para ser substituído pelo Vice-Presidente Harry Truman. Truman pensou que a bomba daria aos Estados Unidos um monopólio nuclear, e então ajudaria a subjugar a União Soviética no período pós-guerra.

Einstein e Oppenheimer em 1950. Foto: Domínio Público

Voltando ao Projeto Manhattan. É a escala do projeto que era impressionante, mesmo para os padrões de hoje. Em seu pico, ele empregou 125.000 pessoas diretamente, e se nós incluirmos as muitas outras indústrias que direta ou indiretamente produziram peças ou equipamentos para a bomba, o número chegaria perto de meio milhão.

Os custos também eram enormes, $2 bilhões em 1945 (cerca de $30-50 bilhões hoje). Os cientistas envolvidos eram um grupo de elite que incluía Hans Bethe, Enrico Fermi, Nils Bohr, James Franck, Oppenheimer, Edward Teller (o vilão da história mais tarde), Richard Feynman, Harold Urey, Klaus Fuchs (que compartilhou segredos atômicos com os soviéticos), e muitos outros nomes brilhantes. Mais de duas dúzias de vencedores do Prêmio Nobel estavam associados com o Projeto Manhattan em várias capacidades.

Mas a ciência era apenas uma pequena parte do projeto. O Projeto Manhattan queria construir dois tipos de bombas: uma usando isótopo de urânio-235 e a outra plutônio.

Como nós separamos material físsil, U-235, de U-238? Como nós concentramos plutônio usando difusão gasosa? Como fazer ambos em escala industrial? Como nós configuramos a reação em cadeia para criar a fissão, trazendo material físsil subcrítico junto para criar uma massa crítica?

Tudo isso exige metalúrgicos, químicos, engenheiros, especialistas em explosivos, e a fabricação de plantas completamente novas e equipamento espalhado em centenas de lugares. Tudo isso tinha que ser feito em velocidade recorde. Isso foi um “experimento” sendo feito, não em escala laboratorial, mas em escala industrial. Isso explica o enorme orçamento e o tamanho do poder humano envolvido.

O governo dos Estados Unidos convenceu seus cidadãos de que o lançamento da bomba atômica em Hiroshima, e três dias depois o de Nagasaki, levou a rendição do Japão. Baseado em arquivos e outras evidências, fica claro que mais que as bombas nucleares, a União Soviética declarando guerra ao Japão foi o que levou a sua rendição.

Eles também mostraram que o número de “um milhão de vidas americanas salvas” devido a Hiroshima e Nagasaki, como eles evitaram uma invasão ao Japão, não tinha base. Foi um número criado inteiramente para propósitos de propaganda.

Enquanto foi dado ao povo dos Estados Unidos esses números como cálculos sérios, o que foi completamente censurado foram as verdadeiras fotos das vítimas das duas bombas.

A única foto disponível do bombardeamento de Hiroshima – a nuvem de cogumelo – foi uma tirada pelo artilheiro de Enola Gay. Mesmo quando poucas fotos de Hiroshima e Nagasaki foram divulgadas meses após os bombardeamentos nucleares, elas eram apenas de prédios estilhaçados, nenhuma de seres humanos verdadeiros.

Os Estados Unidos, aquecendo-se no brilho de sua vitória, não queriam que os bons tempos fossem estragados pelas visões do horror de sua bomba nuclear. Os Estados Unidos dispensaram pessoas morrendo de uma doença misteriosa, que eles sabiam que era mal de radiação, como propaganda pelos japoneses. Para citar o General Leslie Groves, que liderou o Projeto Manhattan, esses eram “Contos de Tóquio”.

Levou sete anos para que o número de seres humanos mortos no desastre fosse visível, e apenas depois que os Estados Unidos cessaram sua ocupação do Japão. Mesmo isso foi apenas poucas fotos, quando o Japão ainda estava cooperando com os Estados Unidos em silenciar o horror da bomba nuclear.

O relato visual completo do que aconteceu em Hiroshima teve que esperar até os anos de 1960: As fotos das pessoas vaporizadas deixando apenas uma imagem na pedra na qual elas estavam sentadas, sobreviventes com as peles penduradas em seus corpos, pessoas morrendo de doença de radiação.

A outra parte da bomba nuclear foi o papel dos cientistas. Eles se tornaram os heróis que tinham encurtado a guerra e salvado um milhão de vidas dos Estados Unidos.

Em sua criação de mitos, a bomba nuclear foi convertida de um grande esforço em escala industrial, para uma fórmula secreta descoberta por poucos físicos, que deu aos Estados Unidos enorme poder na era pós-guerra.

Isso foi o que fez Oppenheimer um herói para o povo dos Estados Unidos. Ele simbolizou a comunidade científica e seus poderes divinos. Isso também o fez um alvo para pessoas como Teller, que mais tarde em combinado com outros para derrubar Oppenheimer.

Mas se Oppenheimer foi um herói apenas poucos anos antes, como eles foram bem-sucedidos em puxa-lo para baixo?

É difícil para alguns observadores internacionais imaginar que os Estados Unidos tinham um movimento de esquerda forte antes da Segunda Guerra Mundial. Além da presença de comunistas nos movimentos dos trabalhadores, o mundo da intelligentsia – literatura, cinema, academia e cientistas – também foi caracterizado por uma forte presença comunista.

A ideia de que a ciência e a tecnologia podem ser planejadas, como J. D. Bernal argumentou na Grã-Bretanha, e devem ser usadas para o bem público foi o que muitos cientistas de esquerda tinham abraçado. Por isso os físicos, naquela época na dianteira da vanguarda nas ciências – relatividade, mecânica quântica – também estavam na vanguarda dos debates sociais e políticos dentro da comunidade científica, e da discussão sobre o papel da ciência entre a população mais ampla.

É no mundo da ciência que uma visão de mundo crítica colidiu com a emergência do novo mundo, no meio dos anos de 1940, em que o estado americano estava se apresentando como “a nação excepcional” e a única hegemonia global.

Qualquer enfraquecimento dessa hegemonia podia apenas acontecer porque algumas pessoas, traidoras dessa nação, entregaram “nossos” segredos nacionais. Qualquer desenvolvimento em qualquer outro lugar podia apenas ser resultado de roubo, e nada mais. Então a história foi.

A campanha para lançar suspeitas sobre cientistas também foi ajudada pela crença generalizada de que a bomba atômica foi produto de simplesmente poucas equações que cientistas tinham descoberto e podiam então ser facilmente vazadas para os inimigos.

Essa foi a gênese da era McCarthy, uma guerra contra as comunidades artísticas, acadêmicas e científicas dos Estados Unidos. Foi uma busca infundada por espiões embaixo de cada cama. O complexo militar industrial foi nascendo nos Estados Unidos e logo assumiu o estabelecimento científico. Quaisquer vozes críticas a esse desenvolvimento tinham que ser silenciadas.

Oppenheimer precisava ser punido como um exemplo para os outros. Os cientistas não deviam se configurar contra os deuses do complexo militar industrial e sua visão de dominação do mundo. A queda da graça de Oppenheimer serviu a outro propósito, embora. Ela foi uma lição para a comunidade científica de que se ela cruzasse o estado de segurança, ninguém era tão grande para não ser derrubado.

Mesmo embora os Rosenbergs – Julius e Ethel – tivessem sido executados, eles eram relativamente figuras menores. Julius não tinha vazado nenhum segredo atômico crucial; ele apenas manteve a União Soviética a par de desenvolvimentos gerais. Ethel, embora uma comunista, não tinha nada a ver com qualquer espionagem.

A única pessoa que tinha vazado segredos atômicos foi Klaus Fuchs, um membro do Partido Comunista da Alemanha que escapou dos nazistas fugindo para a Grã-Bretanha, trabalhou no projeto de bomba lá primeiro, e então como parte do Projeto Manhattan, com uma equipe britânica baseada nos Estados Unidos. Ele fez importantes contribuições para o mecanismo de disparo da bomba nuclear e as compartilhou com a União Soviética.

A contribuição de Fuchs provavelmente encurtou os esforços de desenvolvimento da bomba soviética, na melhor das hipóteses, em um ano. Não foi como se a URSS não teria feito a descoberta dentro de pouco tempo de qualquer modo. Como toda uma série de nações mostraram, uma vez que todos sabem que uma bomba físsil é possível, é fácil para os cientistas e tecnólogos duplica-la. Isso foi feito por países tão pequenos quanto a Coréia do Norte.

A maior tragédia de Oppenheimer não foi que ele foi vitimizado na era McCarthy e perdeu a sua autorização de segurança. Einstein nunca teve uma autorização de segurança, então essa necessidade não foi uma grande calamidade para ele, também. Foi a humilhação pública durante as audiências, quando ele desafiou a retirada de sua autorização de segurança, que o quebrou. Aos físicos, os garotos dourados da era atômica, tinha finalmente sido mostrado seu lugar no mundo emergente do complexo militar industrial.

Foto de identificação de Oppenheimer do Laboratório de Los Alamos. Foto: Laboratório de Los Alamos

Einstein, Szilard, Rotblatt, e outros tinham previsto esse mundo. Eles, diferente de Oppenheimer, tomaram o caminho de construir um movimento contra a bomba nuclear.

Os cientistas, tendo construído a bomba, tinham que agora agir como guardiões da consciência do mundo, contra uma bomba capaz de destruir toda a humanidade. Essa bomba ainda pendura uma espada de Dâmocles sobre todas as nossas cabeças.


por Prabir Purkayastha, Engenheiro e um cientista ativista. Ele é Presidente do Free Software Movement da Índia e editor do Newsclick | Texto em português do Brasil, com tradução de Luciana Cristina Ruy
Fonte: People´s World

Exclusivo Editorial Rádio Peão Brasil / Tornado

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