Guy Standing lançou em 2011 um livro e uma palavra explosiva: “Precariado, uma nova classe perigosa”. Essa palavra que aglutina precário e proletariado identifica uma nova forma de trabalhar que não é compatível com a dignidade, por muitos motivos.
Richard Sennett em O declínio do homem público. (1977) e em The Corrosion of Character, The Personal Consequences Of Work In the New Capitalism, (1998); Sygmunt Bauman em A modernidade líquida (2000) Dominique Aron Schnapper em O fim do Trabalho (1998) avisaram em tempo que o trabalho – esse grande espelho em que nos revemos para viver – estava a transformar-se.
Explicação económica
Podemos ir pelo caminho da explicação económica. A transformação começou na década de 1980, com os mercados liberalizados e desregulamentados. Com o desmantelamento de instituições de solidariedade social.
A integração da China e dos BRIC no mercado de trabalho mundial adicionou 2 biliões de trabalhadores à oferta mundial, a ganhar um quinto do que necebiam os trabalhadores da OCDE. As políticas de flexibilidade do trabalho e a deslocalização da produção e do emprego levaram a custos mais baixos. Tudo isto criou classes globais sobrepostas a antigas estruturas nacionais. Entre elas, o precariado.
Mas o trabalho precário não é apenas perda de salário. É perda de sentido da vida. O trabalho é ganha-pão, mas é também relação com os outros. É um espelho em que podemos ver o nosso lugar na sociedade. É um espaço de reconhecimento familiar. As amizades, o lugar na comunidade, as emoções, os planos de vida, a capacidade de poupança, planos para os filhos, resultavam do nosso trabalho. Tudo isso mudou.
Agora é diferente. A mobilidade total é o sonho dos empregadores que baixam os salários. O desenvolvimento tecnológico destrói empregos. Se as máquinas vão construir máquinas, quem irá trabalhar? E quem irá consumir? E quem não é produtor nem consumidor, não tem onde cair morto. A economia de mercado fica predadora.
Insegurança
Sem segurança no emprego, não há estabilidade de vida e deixamos de construir a nossa vida com os vizinhos. Sem trabalho deixamos de ter filtros através dos quais vemos o mundo e o mundo nos vê. Trabalhar seis meses numa cidade e mais seis meses noutra, é terrível. Piora a vida familiar e social. Os testes de aptidão profissional deixaram de valorizar a capacidade de liderar equipes e preferem a capacidade de se livrar deles.
Há pior que o precariado? Pois há. É o desemprego. Os milhões de desempregados na Europa e no mundo sabem o que é não terem trabalho. Tal como um vírus letal, corrói os músculos e chega ao osso. E onde não há possibilidade de trabalhar como assalariado, como os migrantes sem documentos e sem dinheiro que vêm de todo o lado, sem bandeira, nem responsabilidade.
A precariedade tornou-se na imagem de marca do trabalho actual, a bomba com que o neoliberalismo dinamitou o estado social e democrático de direito. Desapareceu o estatuto conquistado em décadas anteriores, o reconhecimento social ligado ao salário.
Mesmo um trabalhador com salário modesto conseguia construir uma carreira. Com trabalho precário, isso é impossível. O precário não sabe se vai manter o emprego, não tem segurança, não tem garantias nem de melhorar as suas capacidades. O salário baixo não lhe permite habitação, saúde, reforma condignas. E como não pesa na esfera produtiva, não participa na defesa coletiva dos interesses.
A grande mentira
O precário revela a grande mentira da nossa sociedade: num mundo de redes, o precário está cada vez mais isolado. Sem a identidade do trabalho. Sem memória social. Sem o sentido de pertença a uma comunidade, com base em práticas estáveis, padrões de comportamento, reciprocidade e fraternidade éticas.
Em Portugal, existirão 1.200.000 precários nas suas múltiplas formas, de part-time involuntário, contrato a termo, falsos recibos verdes, empresas de trabalho temporário, bolsas precárias, empresas de outsourcing ad hoc que deveriam ter um vínculo ao Estado, Contratos de Emprego e Inserção.
Ainda há quem não perceba a crise do precariado. O juiz José Lopes Barata condenou Ana Nicolau, dos Precários Inflexíveis, a pagar 1200 euros por exigir no Parlamento a demissão do ex-primeiro ministro. Na leitura da sentença destacou que Ana Nicolau é uma “cidadã empenhada”. Mas de forma inconsistente, aplicou a coima.
A solidariedade entre precários é difícil porque não há pontos de encontro. Fica a sensação de um constante abuso. Uma sensação que gera raiva. Bolseiros sem promoção; vendedores que aceitam todas as exigências da empresa, como sorrir e moldar o corpo para ser mais gracioso, uma vantagem para a “empregabilidade”; empreendedores sem oportunidades de desenvolver a sua start-up.
A falência do “mercado de trabalho” gera um novo tipo de pessoa. Alguém que luta contra o desenraizamento: que não está disposto a mais esforços. Tem um pé na anomia e o outro numa vaga esperança. Tem a ansiedade de quem vive à beira do abismo: basta um erro ou um golpe de má sorte para cair. Tem a frustração de saber que se tem muito pouco e que é fácil perder o pouco que se tem. A falta de perspetivas conduz à alienação: e ainda ouve, no coaching, que é preciso ser positivo e sorrir.
Contra esta democracia do call-center é preciso erguer a cidadania. É preciso mostrar que os precários lutam para saírem do fosso onde os deitaram e com os valores da solidariedade e da fraternidade combatam as sereias do populismo que lhes inventam um futuro feito de nostalgias e de passados reais ou imaginários.