Este artigo, previno, é um tanto invulgar no seu assunto e na sua forma…
Biblioteca de Estaline
A Biblioteca de Estaline: Um ditador e os seus livros, do irlandês Geoffrey Roberts, foi publicado em Portugal no princípio de 2023, com edição Zigurate e tradução de Frederico Pereira, tendo o original Stalin’s Library: A Dictator and His Books sido publicado apenas no ano anterior na Yale University Press. Um bom sentido de iniciativa.
Sabendo embora que depois da conquista do poder pelos bolcheviques se tinha assistido a um grande apoio à edição de obras de autores estrangeiros, não tinha ideia de que tinham nacionalizado as grandes bibliotecas privadas e criado uma grande rede de bibliotecas públicas, nem que os novos dirigentes haviam construído bibliotecas pessoais com expressão significativa. Dzhugashvili, filho de um operário sapateiro que chegara a ter uma oficina com aprendizes mas viria a “cair no proletariado”, tivera oportunidade de estudar para padre num seminário ortodoxo mas não concluiu os estudos, apesar de ter tido um aproveitamento positivo. O promissor estudante começou a arranjar problemas por adquirir livros numa denominada “livraria barata” que entretanto abrira na cidade. Envolver-se-ia mais tarde na política, inicialmente com o pseudónimo de Koba, mais tarde com o de Estaline.
Terá sido Estaline a estabelecer – em 1925 – o sistema de classificação de livros da biblioteca, para os quais foi criado aliás um selo ex-libris. Geoffrey Roberts calcula que esta terá contido cerca de 25 000 volumes, que terão sido dispersos, uma vez que a liderança soviética decidiu após 1956 não avançar com a criação de um Museu Estaline. O principal núcleo estaria numa dacha perto de Moscovo conhecida por Blizhnyaya, que dispunha de um anexo, mas depois da sua morte alguns títulos terão sido recuperados do seu apartamento do Kremlin e de uma antiga dacha em Zubalovo. A filha Svetlana não conseguiu que lhe deixassem herdar a biblioteca do pai, nem sequer umas centenas de obras sobre história e sobre arte que afirmou terem sido adquiridos pela mãe. Aliás tendo Estaline o hábito de requisitar livros a outras bibliotecas – por exemplo à Biblioteca Lenine, descrita como “depósito central”, e a bibliotecas departamentais – e não os devolver(i) não é certo mesmo depois de, em anos recentes, terem sido localizados as “sobras” da sua biblioteca pessoal, quais os livros efectivamente lidos. As pometki – anotações – nos livros podem permitir tirar conclusões, mas Roberts alerta para que alguns livros, por exemplo sobre estratégia militar, já vinham anotados anteriormente, e que algumas anotações eram de autoria de Svetlana ou foram erradamente atribuídas a Estaline.
Conhecem-se de modo geral as preferências de leitura de Estaline, quer no domínio da não-ficção, quer no domínio da ficção, inclusive estrangeira, mas conhecendo apenas o georgiano e o russo, este leitor ávido de história, estratégia, política, teve de se contentar com obras traduzidas, muito embora tenham existido também na sua biblioteca edições estrangeiras. Que era um intelectual e gostava de livros, parece estar adquirido.
Modernamente registam-se algumas tendências para reabilitar o personagem. Em tempos que já lá vão, um colega que, tendo sido simpatizante comunista durante muito tempo, se decidira a filiar-se, disse-me que Estaline nunca tinha feito mal ao povo. Respondi-lhe imediatamente que a prisão e execução de Tukhachevski e dos seus colegas do Alto Comando Soviético em 1937 tinham sido responsáveis pela debilidade mostrada quatro anos depois quando da invasão da URSS pelo exército alemão e que causou milhões de mortos entre o povo. Desconhecia na altura, mas a obra de Roberts quantifica-o, que até final de 1938 “entre os militares executados contavam-se três marechais, 16 generais, 15 almirantes, 264 coronéis, 107 majores e 71 tenentes” tendo na totalidade sido dispensados do serviço militar 34 mil oficiais. Outro episódio também referido por Roberts tem a ver com a denúncia feita por Kruschev ao XX Congresso, realizado em 1956, de que Estaline tinha desdenhado avisos bastante precisos recebidos dos agentes dos serviços soviéticos colocados em outros países(ii) e entrado em pânico com a invasão, só tendo começado a reagir quando recebeu a visita de alguns membros do Bureau Político. Julgo que há actualmente alguma literatura reabilitadora, mas o autor atribui a inação de Estaline ao receio de dar pretextos a Hitler para a invasão, à convicção (sem fundamento) de que as defesas aguentariam, afirma que a agenda no Kremlin se manteve e que o secretário-geral teve de se refugiar algum tempo na dacha para ler um livro recentemente recebido – Polkovodets Kutozov de Mikhail Bragin – mas “voltou a aparecer para proferir um magistral discurso transmitido pela rádio”. Explicação singular…
Biblioteca de Salazar
A biblioteca de António de Oliveira Salazar – outro antigo seminarista – é objecto de análise num estudo também recentemente publicado “O ‘encanto’ multifacetado do Estado Novo: Doadores de livros estrangeiros na biblioteca de Salazar”, assinado por Duncan Simpson e Rita Almeida Carvalho e inserido na colectânea coordenada por António Costa Pinto O Estado Novo de Salazar: uma terceira via autoritária na era do fascismo, Edições 70, 2022 sendo já “Edições 70” uma chancela de Edições Almedina, SA, Coimbra.
Dizem os autores que a maior parte da biblioteca se manteve em Coimbra até 1935 e que os livros foram sendo transferidos “para Lisboa, onde passou a viver”, e para Santa Comba Dão “a aldeia onde se situava a casa de família”(iii), tendo Salazar supervisionado tanto a mudança dos livros, como, em Lisboa, a organização da biblioteca, cujo sistema de classificação foi discutido por ele com o arquitecto Raul Lino. Completadas em 1938 as obras na residência oficial os livros ficaram divididos entre o escritório de Salazar no rés-do-chão e a biblioteca no primeiro andar. Com base nos catálogos disponíveis no Arquivo Nacional da Torre do Tombo e nos diários pessoais de Salazar, os autores estimam que em 1944 a biblioteca tivesse aproximadamente 12 000 volumes, sendo que quantificam em 1731 livros as obras de autores estrangeiros, dos quais 419 oferecidos pelos próprios autores.
Simpson e Carvalho dividem estes doadores em cinco grupos distintos: eugenistas, católicos, tanto “figuras eclesiásticas” como “militantes leigos”, corporativistas, proponentes de alianças transnacionais e mulheres escritoras, deixando para um próximo estudo “várias outras categorias importantes – embora quantitativamente menos relevantes” como os “fascistas” e ocultistas. Trata-se em larga medida de uma “classificação chinesa” embora os autores estejam bem documentados sobre os curricula de muitos dos doadores que interagiram efectivamente com Salazar ou que de qualquer modo tivessem formado uma determinada ideia do pensamento e da acção de Salazar e que tenham tentado exprimir-lhe o seu apreço / atrair a sua atenção oferecendo-lhe uma sua obra.
Permito-me apenas formular observações a dois dos casos tratados por Simpson e Carvalho:
O do “famoso estatístico fascista” Gini, que esteve em Portugal em 1940 aquando da comemoração dos centenários, e foi recebido por Salazar, mas que nunca tentou oferecer-lhe obras sobre eugenia sendo que, embora lhe tenha enviado muitos dos seus livros sobre economia, o português não os terá lido. “As afinidades com Salazar não eram claras”, dizem os autores. Permito-me recordar que na Faculdade de Direito de Coimbra Salazar fora professor também de Estatística.
O do padre jesuíta belga Albert Muller que ofereceu a sua obra de 1935, La Politique Corporative, Essais d’Organisation Corporative. Como os autores enfatizam, trata-se de uma personalidade católica que se preocupa em assinalar os casos em que as experiências corporativas pareçam ter em conta os ensinamentos da doutrina social da Igreja, aliás este sacerdote escreveu também especificamente sobre os ensinamentos de Pio XII, sobre outros temas de Economia e até mesmo sobre o Tratado de Versalhes, sendo talvez redutor catalogá-lo como “corporativista”. Já tinha aliás escrito Organisation corporative et l’économie dirigée au Portugal com base na Constituição de 1933 e nos Decretos de 23 de Setembro de 1933, trabalho esse objecto de recensão por parte da Revue Internationale de Sciences Administratives no seu número publicado no 3º Trimestre de 1934. Não posso excluir que Muller e Salazar se tenham conhecido em Agosto de 1927 num Congresso da Juventude Católica Belga realizado em Liège(iv).
Registam os autores “A localização atual da biblioteca é desconhecida. Após a morte de Salazar, os livros foram entregues aos herdeiros, que possivelmente os venderam aos alfarrabistas”. Os livros não teriam aposto um carimbo de entrada ou um ex-libris ou, pelo menos, o estudo de Simpson e Carvalho não o menciona.
Biblioteca de Arnaldo Gama
Em 9 de Agosto de 2023 publiquei no Jornal Tornado um artigo sobre o escritor Arnaldo Gama (Arnaldo Gama e as memórias do Norte), também advogado e jornalista, falecido muito cedo, com 41 anos, em 1869, e referi diversos romances históricos por ele publicados que o mostravam solidamente documentado sobre várias épocas.
Como seria a sua biblioteca?
O facto é que esta questão foi respondida, quando, 25 anos depois da sua morte, foi anunciado um grande leilão incidindo sobre a sua biblioteca: “uma das melhores livrarias de Portugal que pertenceu ao Exmo Senhor ARNALDO DA GAMA”(v) (veja-se que nesta altura se falava de “livraria”, à inglesa, e não de “biblioteca” ).
Estavam em causa 730 obras, uma ou outra manuscritas, organizadas de A a Z, e lotes de diversos livros, que hoje diríamos livros técnicos – sobretudo jurídicos – e folhetos.
Admite-se que a biblioteca de Arnaldo Gama assim colocada em leilão, tivesse sido iniciada pelo seu pai, advogado estabelecido no Porto, mas o rol é impressionante, até por incluir livros do Século XVII.
O que me recorda que na relação de livros da autoria de Arnaldo Gama, por mim plasmada no artigo de Agosto de 2003, omiti um – A Caldeira de Pero Botelho – passado em Coimbra no tempo de Luís de Camões – melhor, de que Luís de Camões é um dos principais protagonistas. Um Luís de Camões de Coimbra, um Luís de Camões de 20 anos, que defende que se verseje nas línguas nacionais:
- O mundo das letras! – acudiu subitamente Luiz de Camões – O mundo das letras! Por vida vossa, Miguel de Cabedo, tal não digais. Olhai o que se está passando na Europa e vêde como todos os verdadeiros engenhos se esforçam por apurar as suas respectivas línguas. Ronsard em França, Chaucer em Inglaterra, Dante na Itália…
- E contudo Dante escreveu em latim a sua África – interrompeu Miguel de Cabedo com um sorriso irónico.
- E na África caiu como haveis de cair vós todos os que escreveis em latim – replicou de fronte levantada o moço poeta.
Iniciado em Coimbra o enredo prossegue na Madeira sem Luís de Camões e temos então A Caldeira de Pero Botelho propriamente dita. O herói é um estudante madeirense, Simão de Ornelas, amigo de Luís de Camões, Ornelas que voltaremos a encontrar num Epílogo (Trinta e sete anos depois) em 1580, numa Lisboa em que pelas esquinas estão afixados papéis onde se pode ler:
Viva el-rei D. Henrique
Nos infernos muitos anos,
Que deixou no testamento
Portugal aos castelhanos
Quatro meses depois, com os castelhanos já concentrados em Badajoz, Simão de Ornelas ouve do poeta “Eu fui tão afeiçoado à minha pátria, que não me contentei só de morrer nela, mas com ela”.
Final
Este apontamento sobre as bibliotecas de Estaline, Salazar e Arnaldo Gama permitiu-me falar de Luís de Camões de que se comemoram agora 500 anos de nascimento, no entanto é sempre triste falar de bibliotecas que se dispersam.
Notas
(i) Segundo o autor, o jovem Dzhugashvili já tinha tido de pagar ao Seminário onde estudou uma indemnização por não devolver 18 volumes requisitados.
(ii) Martin Gilbert, biógrafo de Churchill, na súmula de 1991 editada pela Bertrand em 2002, revela que Churchill enviou igualmente informação precisa sobre os planos alemães, obtida através da decifração dos respectivos códigos.
(iii) Suponho que os autores se pretendem referir ao Vimieiro.
(iv) Em que segundo o Salazar, I vol. de Franco Nogueira, o biografado teria participado activamente.
(v) Reproduzo aqui um anúncio que a Biblioteca Nacional incluiu no seu catálogo.