A Comissão Europeia espera ver aprovado, muito em breve, “o maior acordo comercial de todos os tempos”. Trata-se do acordo entre a União Europeia e o Japão, conhecido por JEFTA[1]. Seria de supor que o “maior acordo de todos os tempos” exigisse um amplo debate e reflexão, mas raramente se encontra na imprensa nacional qualquer informação a este respeito.Existem muitas semelhanças entre o JEFTA e o CETA, o acordo comercial entre a UE e o Canadá. No entanto, existe uma diferença muito importante: ao contrário do CETA, o JEFTA não vai estabelecer um sistema paralelo de Justiça que permita às empresas multinacionais curto-circuitar os nossos Tribunais e processar os estados em valores que podem ascender às dezenas de milhares de milhões de euros. Esta importantíssima diferença, que à partida poder-nos-ia fazer considerar o JEFTA um acordo bem menos ameaçador, traz no entanto uma consequência perversa: a Comissão Europeia considera que a inexistência desses mecanismos permite evitar que os parlamentos nacionais tenham de ratificar o acordo – a aprovação seria feita apenas pelo Conselho e pelo Parlamento Europeu. Esta é uma solução inequivocamente menos democrática e mantém o padrão usual de tentar afastar os cidadãos das decisões estratégicas de maior importância. Felizmente, o representante francês no Conselho Europeu manifestou-se contra esta opção, alegando que várias questões do acordo deveriam contar com uma ratificação também por parte dos estados. Será uma boa altura para pressionar o governo português a apoiar essa posição no Conselho. Ainda a este respeito, convém também lembrar que a União Europeia não desistiu de criar mecanismos de justiça paralela para as multinacionais que operem nestes mercados: procurarão fazê-lo no âmbito de outro acordo com o Japão, cujas negociações já iniciaram.
Em relação ao JEFTA propriamente dito, existem outras razões para o rejeitar. Uma das mais importantes diz respeito à harmonização regulatória. Em teoria, existem vantagens em harmonizar as regulações entre a UE e o Japão, no entanto, tal como no CETA, o processo decorreu de forma muito pouco democrática, sem ouvir as populações e as associações da sociedade civil. Isto seguiu-se a um secretismo nas negociações que tornaram este processo não apenas muito distante da transparência desejável, mas afastadíssimo até dos mínimos aceitáveis. Em consequência destes vícios de forma, o resultado material da harmonização foi o expectável: não protege o bem comum e os interesses das populações, mas sim os das multinacionais (elas sim, envolvidas na redacção) – um exemplo ilustrativo: o JEFTA não faz qualquer referência ao Princípio da Precaução, tão fundamental no ordenamento jurídico europeu.
Para o futuro, e ainda no contexto de contornar os processos democráticos, o JEFTA cria 10 Comissões (Art. 22.3) com reguladores da UE e Japão, para decidir em assuntos da competência dos Estados Membros: concursos públicos, agricultura, segurança alimentar, serviços, comércio electrónico, etc. Salvaguarda-se inclusivamente a possibilidade de essas comissões invadirem outras áreas não especificadas, sem a aprovação dos parlamentos.
O JEFTA também ameaça os serviços públicos de diferentes formas. Uma delas é limitando a sua esfera às chamadas “listas negativas”[2]. Estas limitam severamente a capacidade de os governos criarem, expandirem e regularem serviços públicos ou reverter privatizações.
O JEFTA, tal como o CETA, tenderá a diminuir a estabilidade do sistema financeiro (se os mercados ficam mais integrados, o bloco com a política macroprudencial menos exigente irá acentuar a sua vantagem competitiva, criando um incentivo perverso para políticas menos cautelosas), e não se encontram nenhumas medidas no JEFTA para fazer face a esta questão, bem pelo contrário (até se reduzem os instrumentos disponíveis para combater a especulação financeira e se colocam obstáculos adicionais à reforma da estrutura bancária).
Vale a pena recordar também que o Japão ainda não ratificou convenções centrais da Organização Internacional do Trabalho, como a Convenção C105, relativa à Abolição do Trabalho Forçado, e a Convenção C111 (sobre Discriminação em matéria de Emprego e Profissão). Em particular, a recusa em assinar da convenção C111 deve-se a questões relativas à discriminação de género e a sua ausência é sintoma de questões laborais com impacto real na sociedade japonesa. O JEFTA traz, por esta via, consequências laborais indesejáveis para os estados membros da UE.
As lacunas mais graves do JEFTA estão no capítulo sobre comércio e desenvolvimento sustentável, que é ainda mais fraco que o seu análogo no CETA (já de si inaceitável). A estas questões, que ignoram o desafio civilizacional de combater o aquecimento global, e as consequências catastróficas que mal começámos a experimentar de forma trágica, podemos juntar as omissões em relação às madeiras e às pescas. O Japão não ilegaliza certas práticas consideradas inaceitáveis em quase todo o mundo desenvolvido e têm existido denúncias de empresas japonesas a devastar florestas protegidas na Roménia para vender a madeira assim obtida – este acordo alargará os mercados e tornará quase impossível garantir que a madeira que nos chega não tem origem neste tipo de práticas. O mesmo se aplica às pescas, uma questão que até pode ser mais sensível para Portugal (tendo em conta as restrições que já sofremos para uma gestão mais sustentável dos stocks, que assim ficam em risco acrescido).
Vale a pena acrescentar que os Eurodeputados tomarão a sua decisão tendo em conta um documento de estudo dos impactos (“Sustainability Impact Assessment”) caracterizado por uma falta de rigor absolutamente chocante. A mesma empresa contratada tinha realizado um estudo onde previa um impacto no produto interno bruto europeu cerca de dez vezes inferior ao que consta no SIA, baseando-se em dados publicados (e escrutinados). No entanto, os dados que fundamentam os actuais resultados do SIA não estão disponíveis ao público e não foram adequadamente escrutinados. Quando esse processo ocorrer, os valores obtidos poderão ser revistos em baixa, mas a decisão política já estará tomada. As nossas suspeitas de que isto ocorrerá são fundamentadas também num conjunto de erros identificados e um exemplo ilustrativo pode dar uma ideia do seu calibre: o relatório diz, a propósito dos impactos ambientais, que nenhuma associação da sociedade civil apresentou qualquer tipo de preocupação. Em poucos minutos na internet qualquer motor de busca permite encontrar várias dezenas que o fizeram: como é que um erro destes se mantém na versão final do relatório?
Urge uma política de comércio diferente para a União Europeia e ela começa pela rejeição deste tipo de acordos que agravam os desequilíbrios e disparidades[3] que se têm acumulado nas últimas décadas, criando uma estagnação dos salários reais, uma insustentável concentração da riqueza, um esvaziamento da democracia e um agravar muito perigoso das ameaças ambientais. Rejeitar o JEFTA será um primeiro passo rumo a um Comércio Internacional Justo.
[1] Embora recentemente as instituições europeias tenham passado a designar o acordo comercial por “Acordo de Parceria Económica”, o que alteraria a sigla, preferimos manter a designação pela qual o acordo é conhecido.
Na verdade sabemos que as instituições europeias procuram evitar o uso de siglas que facilitem a comunicação entre os cidadãos mais informados e críticos destes acordos e a restante população. Parece exagero mas não é: OMG! TTIP, JEFTA, CEPA are DOA
[2] Com “listas negativas” só não estarão sujeitos à liberalização e privatização os serviços que tiverem sido explicitamente mencionados no acordo. À partida poder-se-ia pensar que algum grau de cuidado em relação à lista que consta no JEFTA poderia evitar lacunas graves neste domínio, mas a situação é mais complexa, já que a economia é tão mutável. Há algumas décadas atrás empresas como o Facebook, o Google, a Amazon nem sequer existiam e hoje correspondem a uma fatia muito considerável da nossa economia. Serviços como os prestados pela Uber ou Airbnb estavam longe de ter nascido. Tendo isto em consideração torna-se claro que qualquer lista que se crie hoje estará desactualizada e desajustada em poucos anos. No entanto, se estivermos a falar de listas negativas estamos também a falar de negar às populações a capacidade de ajustar livremente, consoante a vontade dos cidadãos, o papel do estado às mudanças da economia. Como agravante, nestes novos acordos há outra armadilha, a chamada cláusula “standstill”, que determina que os estados não podem retroceder quanto ao nível de liberalização (abertura de mercado) e desregulação que já atingiram; ou seja, o ponto actual da liberalização e desregulação fica cristalizado, proibido de retroceder.
[3] Estes acordos tão cedo desregulam de forma aparentemente indiscriminada como aumentam a regulação. O critério é sempre o mesmo e está longe de corresponder à defesa do bem comum ou ao respeito pela vontade dos cidadãos. O critério para se apertar a regulação ou acabar com ela é o de defender acima de tudo os interesses e conveniências das multinacionais, a quem estes acordos servem. Um exemplo elucidativo é o da propriedade intelectual, que tem sido reforçada nas últimas décadas de forma absolutamente desequilibrada, e tende a ser agravada por este tipo de acordos (tornando medicamentos mais caros, aumentando ameaças à liberdade de expressão, etc.).
Por João Vasco Gama, Membro da TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo
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