Enquanto continuamos a viver numa economia distorcida pela Covid-19, cuja estranha e instável dinâmica ainda demoraremos a entender cabalmente, a reacção aos primeiros números que deram conta de uma quebra generalizada na criação de riqueza, rapidamente outros começaram a surgir destacando “recuperações” e “crescimentos” milagrosos.
De forma geral afirmar que a economia ocidental (o chamado modelo de economia capitalista de livre mercado) depende da pobreza, ou pelo menos da sua constante ameaça, para assegurar a existência de produtos e serviços abundantes (tão abundantes que precisam recordar constantemente os consumidores da sua obsolescência) e baratos, cuja produção depende de uma extensa força de trabalho disponível e remunerada com salários miseráveis, controlada por um poder que nunca hesite na aplicação dos dogma da flexibilidade salarial e da inviolabilidade dos contratos, salvo o do contrato social que deveria assegurar condições de vida digna para todos os cidadãos.
A dependência pelos produtos baratos e abundantes, induzida por um modelo de produção insano e predador de matérias-primas, continua a ser especialmente evidente pela atenção dada pela comunicação social às notícias relacionadas com aumentos de preços ou escassez de mão-de-obra que raramente revelam para questões como o agravamento das tragédias associas ao aumento da pobreza ou ao flagelo do trabalho mal remunerado. Esta é uma abordagem tão pouco agradável que normalmente prefere-se discutir a problemática da pobreza como um castigo ou uma praga, mas raramente se admite abertamente que as altas taxas de pobreza são consequência de uma escolha política e de que há razões económicas para essa opção, limitando-a a questões de justiça – porquê pagar a preguiça alheia? – ou até de puro paternalismo – se pudesse, muita gente não trabalhava –, entrando na discussão da chamada subsídio dependência. Claro que poderá sempre haver quem use um qualquer sistema de rendimento garantido para não trabalhar, mas não sendo essa a situação normal (ou expectável) e quando são bem conhecidas as situações de desemprego e de salários demasiado baixos, essa minoria ter-se-á visto convertida no centro do debate na falta de melhor argumentação, ou seremos tão ingénuos a ponto de acreditarmos que as situações de pobreza e de desemprego são uma condição confortável ou uma escolha atraente para quem as sofre?
O facto é que uma sociedade de consumo desbragado e de competição desenfreada leva ao esquecimento de quanto os mais abastados beneficiam com a pobreza dos outros e ao desvio das atenções e preocupações para os receios em torno da inflação e da perda de acesso a bens e serviços a baixo custo e daí para o elogio dos baixos salários e para a necessidade manter uma economia livre de impostos e de déficits que garanta o investimento… que gera mais postos de trabalho mal remunerados e vilipendia quem lute pela dignidade do trabalho.
Note-se que, contrariamente ao que geralmente se afirma, um aumento do rendimento disponível das famílias de menores recursos, seja ele alcançado pela via do aumento dos salários mais baixos ou de um mecanismo do tipo rendimento garantido, só gerará inflação se a economia estiver a operar em situação de pleno emprego dos factores produtivos (capital e trabalho), situação em que um aumento da procura induzirá, necessariamente, uma subida dos preços em virtude da incapacidade para aumentar a produção. Como sucede na actualidade, quando a generalidade das economias ocidentais atravessa um período de crescimento económico anémico e de reduzida ou nula inflação, um aumento da procura deverá ter inicialmente um efeito positivo no crescimento da economia por via do estímulo à oferta de bens e serviços, longe dos temidos efeitos sobre a inflação.
Mas isto é invariavelmente escondido ou pronta e enfaticamente negado, quando alguém o recorda, mas nunca explicado ou justificado, pelos anódinos e inconsequentes analistas e comentadores de serviço, que assim se convertem em meras correias de transmissão de ideias feitas e tantas vezes erradas.