Ribatejo é lezíria, são toiros e cavalos, campinos e touradas. Mas é também morada de outra gente, vinda de longe, à procura de bom porto e de sustento. São os avieiros, a quem Alves Redol chamou “ciganos do Tejo”
No Inverno, quando o mar de Vieira de Leiria se mostrava pouco generoso, famílias inteiras deslocavam-se em campanha até ao Tejo que, na sua riqueza, lhes oferecia sável, enguia, fataça, robalo. Foram ficando por ali à borda-d’água, nos barcos, improvisadas casas de três divisões: à popa, a oficina, destinada ao trabalho da pesca; ao centro, a cozinha; à proa, sob um toldo armado com estacas de salgueiros, o quarto, que abrigava toda a família.
Se o oceano apenas lhes fornecia a sardinha durante o Verão, o Tejo proporcionava-lhes pesca ao longo de todo o ano e, até porque deslocar toda a descendência nem sempre era acessível à economia familiar, aos poucos foram prolongando as campanhas de Inverno. Contam os livros que, há pouco mais de cinquenta anos, começaram a fixar-se ao longo das margens do Tejo. Casa Branca, Palhota, Escaroupim, Caneiras, Conchoso, Patacão, Lezirão, Muge, Valada, Carregado, Vila Franca, eis alguns dos locais onde os avieiros se foram instalando.
A fixação definitiva trouxe-lhes a vontade e a necessidade de uma habitação permanente e segura. Barracas de lona ou coberturas de caniço sobre estacas serviam para as temporadas da faina mas mostravam-se insuficientes quando estas se prolongavam. No início, bem à forma da lezíria, instalaram-se em palhotas, construídas com o material que os valados lhes ofereciam. Quando as condições económicas o começaram a permitir, com características bem diferentes das casas ribatejanas, nascem as aldeias de construção palafítica, típicas da praia de Vieira de Leiria mas também adaptáveis às cheias do Tejo e à necessidade que o pescador sente de estar perto do barco, seu instrumento de trabalho.
Hoje, já não são esses ”ciganos do Tejo” que encontramos na beira-rio mas os seus filhos e netos. Apesar de tudo, ainda é possível encontrar alguns avieiros, embora as suas características se tenham adaptado à realidade actual do Tejo – a construção de barragens impede a circulação do peixe que passou a procurar outros locais para a desova e as descargas das águas residuais no leito do rio, mesmo quando tratadas, matam e deformam o peixe.
Das suas habitações resta a memória, auxiliada pelo espólio documental e o investimento de algumas câmaras na recuperação e manutenção do que sobreviveu ao abandono e à modernidade.
Fomos à sua procura em Escaroupim, uma daquelas aldeias por onde não se passa mas onde se vai. É ali, à beira Tejo, onde termina a estrada vinda de Salvaterra, um lugarejo aparentemente igual a tantos outros. Casas térreas, nas ruas quase ninguém. Ao longe passeiam-se três ou quatro cães, ouve-se o ruído de água que uma mangueira projecta contra o chão de um quintal.
Entre as casas sobressaem quatro ainda em madeira, uma quinta mais à frente, assentes em colunas de cimento, na sua construção palafítica. É o núcleo museológico da aldeia que nos mostra a construção outrora característica da gente do rio – os quartos, sempre em número de dois, fosse a família grande ou pequena, a sala, a divisão maior, separados por tabiques. Do lado oposto ao dos quartos, a cozinha. Portas, apenas as que davam para a rua porque interiormente eram cortinas, de cores alegres e vistosas, que permitiam alguma privacidade. No sótão, divisão criada sobre os quartos, eram guardados os aparelhos de pesca.
Continuando pelo suave declive do terreno, somos conduzidos a um largo cuja recuperação trouxe à população um agradável local de lazer. Sob os chorões, árvore tão característica da borda d’água, bancos e mesas servem os amantes dos piqueniques ou aqueles que apenas gostam de estar sentados a contemplar ou a ler. À esquerda, também recuperadas e em construção palafítica, meia dúzia de casinhas, distribuídas aos pescadores para guardarem as suas artes e o restaurante, para os visitantes do fim de fim-de-semana a quem a paisagem idílica atrai. Os barcos descansam.
As ruas estão desertas. É o fim da manhã de um dia de semana. No cais palafítico, recém recuperado pela câmara, alguns homens, de muito poucas falas. Dispersam rapidamente, talvez pela aproximação de um estranho por tais paragens, talvez justificado pela hora do almoço que se aproxima. É já no café da terra, após a refeição do meio-dia, que encontramos António Simãozinho e Joaquim Letra. A meio do nome, ambos têm o apelido Botas porque “aqui é difícil de encontrar alguém que, mesmo vagamente, não seja de família. Todos os nossos antepassados vieram de Vieira de Leiria”, justifica Joaquim. Assim é. Contam os anais que mencionam a história da terra, ter ela nascido dessa leva migratória de há mais ou menos cinquenta anos. Contudo, os tempos são outros.
Nesta terra de fim de estrada, onde o padeiro ainda se desloca de carrinha com buzina roufenha que anuncia a sua chegada, o sentido da vida mudou. Os outrora pescadores já não o são para alimentar a prole mas quase apenas para ajudar à economia familiar. A agricultura substituiu-se ao rio no sustento dos homens. Empregos como a construção civil ou a hotelaria, por terras próximas, mostram-se mais fiáveis do que continuar a açoitar o Tejo para dele tirar o peixe que não dá para viver. Não porque o rio se tenha tornado avaro mas porque o escoamento do produto se tornou difícil.
Fataça, barbo, enguia e algum camarão, são as espécies que vão vindo à rede ao longo do ano mas, sobretudo a primeira, já perdeu todo o valor comercial: “há uns tempos, todas as semanas vinha aí um intermediário que comprava toda a fataça para fazer farinha de peixe. Agora já não há ninguém a comprar”, conta António, “se houvesse alguém a fazê-lo, toda esta gente andava aí a pescar.” “Hoje ninguém quer isto a não ser para um petisco de fim de tarde” confirma Joaquim.
E nem no mercado público, antiga forma de escoamento do peixe, se encontram hoje as mulheres, outrora com os ranchos de filhos à ilharga, companheiras inseparáveis do homem na arte da pesca, a comercializar o resultado da faina.
É, aliás, como em tudo na vida, o lucro inerente à actividade que se nota ser um travão à sua continuidade. Só no tempo da enguia o rio retoma algum alento, longe, apesar de tudo, dos tempos áureos dos avieiros. O facto de a irós ser uma espécie mais bem cotada e tradicionalmente procurada nos restaurantes do Ribatejo faz com que aos barcos seja dada maior utilidade do que aquela que têm ao longo de quase todo o ano. Além da restauração há ainda os espanhóis, que se deslocam por terras de beira Tejo à procura da enguia portuguesa. Aqui começam a inverter-se os papéis. Cientes da qualidade do produto que capturam, os pescadores portugueses sobem os seus preços até ao ponto que sabem poder vendê-lo para o país vizinho. Por outro lado, os restaurantes nacionais, porque também querem lucrar o máximo possível, passam a comprar a irós espanhola, no dizer de apreciadores e entendidos, muito aquém do sabor e da textura da portuguesa. Contudo, isso não é da preocupação do pescador, que tem nos meses da enguia a melhor altura do ano para complementar o seu ordenado.
É neste imbróglio comercial, que se pode encontrar o motivo daquilo que, por ser proibido, todos se recusam a falar: o rendimento proveniente da apanha do meixão. Sem terem dono aparente, estendidas no chão a secar, podem ver-se redes quase opacas, de tão apertada que é a sua malha. Olhando para o leito do rio, percebe-se uma estrutura, sustentada por estacas grossas. É ali o viveiro das enguias que nunca hão-de crescer nem nadar ao sabor da corrente do Tejo. Todos dizem desconhecer a quem pertence aquela construção, porém, uma coisa é certa: indiferentes ao facto de estarem a comprometer a existência futura da espécie, há pessoas que ali travam o peixe que conseguiu entrar mas não será capaz de sair a não ser para as mãos dos donos de alguns restaurantes ou para intermediários espanhóis, ao valor de centenas de euros o quilo.
Mas, apesar de esta ser uma realidade do Tejo, não tem contudo directamente a ver com a faina dos avieiros, a não ser no prejuízo futuro que lhes irá trazer e, desse, apesar da revolta aparente dos dois homens, talvez pelo receio de chamar as atenções para a actividade ilegal, eles preferem não continuar falar, antes predispondo-se a demonstrar a técnica tradicional e a facilidade com que o peixe vem às redes, aproveitando-o para um petisco de fim de dia.
Com a maré-alta fazem-se ao Tejo. No barco, antigamente homem e mulher, hoje dois homens, armados com uma rede atada a varapaus que irão perfurar as águas até encontrarem terra onde se agarrar. Mesmo ali, quase à borda-d’água, remam em círculo, enquanto açoitam o rio para espantar o peixe. Em fuga desnorteada, os cardumes ficam presos no muro feito de malha. É altura de recolher varas e rede. Desemalham o peixe e retornam a águas mais fundas para repetir todo o ritual até os peixes aprenderem a desconfiar da acalmia do rio, o que, seja pela abundância da espécie, seja por demasiada tontura dos animais, não acontece facilmente.
Ao atracar no cais de madeira desemalha-se o último peixe. São visíveis alguns dos estragos provocados pela poluição das águas quando um ou outro surgem deformados. Diz António Simãozinho, “com os despejos da ETAR, e apesar de nos dizerem que os graus de poluição são os mínimos e que aquilo vem tratado, nós não acreditamos nisso porque o peixe continua a aparecer morto, a boiar, sem oxigénio.” Esse é um problema aparentemente sem solução. Pelas análises feitas às descargas, os níveis de poluição estão dentro dos limites legais.
O sol quase se põe. Homens e mulheres começam a regressar, não vindos do lado do rio mas de terra. De madrugada ou no fim-de-semana talvez se façam às águas do rio, porque a sua vida agora é outra.
[…] Source: O que resta dos Avieiros – Jornal Tornado […]