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Sexta-feira, Janeiro 31, 2025

O “racismo afectivo” é o mais difícil de combater

Inocência Mata

Pela primeira vez, Portugal tem uma ministra negra. Contrariamente ao que já ouvi de alguns comentadores africanos, este facto é, sim, notícia porque tal nunca acontecera, apesar de já ser quase comum por toda a Europa, mesmo em países que não têm uma “tradição colonial”. Mais: já é tarde! Porém, como diz o povo, antes tarde do que nunca. Por isso, eu saúdo este facto. Mas o estranho é que muita gente – mesmo comentadores africanos –, de quem se esperaria uma atenção mais assertiva em relação a esta questão da visibilidade do Outro, acha que não é importante.

Por isso não se entende que as mesmas pessoas critiquem que na Guiné-Bissau, por exemplo, não haja mais governantes não negros (embora ao longo do tempo tenha  havido muitos, contrariamente a Portugal em que raramente isso aconteceu e, em relação ao governante negro, julgo ser a primeira vez). É a eterna falácia consubstanciada na interrogação que se tornou viral de forma acrítica “E se Obama fosse africano?” – como se houvesse algum Obama europeu! Ou sequer secretário de Estado! E sobretudo quantos Obamas africanos já os houve… Aqueles que se insurgem contra o facto de em países africanos não haver mais governantes não negros não parecem importar-se com o facto de, num país que se orgulha dos 500 anos da presença em África, não reconhecer portugueses negros… É o constante “dois pesos, duas medidas”, quando o assunto é África.

Lembro-me há uns anos de um mal-estar num evento sobre interculturalidades e multiculturalismo,  aliás organizado por uma Concelhia do PS, para o qual eu fora convidada, em que afirmei que, para a implementação de uma política multicultural, haveria a necessidade de lutar contra a invisibilidade do Outro (não branco) e pela representatividade (social e política) dos diferentes segmentos que compõem a paisagem humana portuguesa: a resposta foi um argumentário grosseiro (apesar do direito à discordância) em forma do estafado discurso da apetência portuguesa para a miscigenação – só faltou explicitar o elogio ao Portugal pluricontinental, multirracial e pluricultural…

 

De infractor a vítima

Em Portugal, a questão da cor da pele ainda é tabu, existindo a percepção de que, quando não se fala de uma questão, ela deixa de existir.  É um “racismo afectivo”, como disse um dia Kofi Anann acerca do racismo brasileiro. E esses são os mais difíceis de se combater: o discriminador não tem consciência de que discrimina (porque determinadas expressões e atitudes já estão naturalizadas e já fazem parte da “cultura social” e todo o mundo defende o infractor transformando-o em vítima de algum mal-entendido ou da má-fé de quem critica – o infractor nem percebe por que está a ser criticado, acha-se injustiçado); o discriminado entretanto, afectivamente, acha que não foi por mal… E assim continuamos todos, felizes e contentes, a perpetuar um estado de coisas que mais não é do que puro racismo advindo de um atávico preconceito em relação ao Outro (o que é próprio, aliás, de uma situação colonial), com raízes numa história recente que não se quer discutir. Ora, o colonialismo português não foi mais ou menos racista: foi diferente e é nessa diferença que tem consistir a forma de lidar com ele – também nos espaços outrora imperiais. Essa da diferença do colonialismo português é outra história que urge desmistificar…

Uma vez uma colega disse-me que não olhava para a cor, que se esquecia da cor das pessoas. Respondi-lhe (ironicamente, claro) que ela tinha sorte porque eu, por exemplo, não podia esquecer-me da minha cor. É caso para dizer: no mundo em que vivemos, bem-aventurados aqueles que não dão importância a este tipo de “problema”! Ou porque não o têm ou porque vivem numa sociedade que nem os da ilha do rei Utopos conheciam. Já vivi episódios de racismo muitas vezes. Nem imaginam quantas! Todos os actos de racismo são ofensivos, porém, para mim, se há coisa que mais me irrita é o desrespeito pela minha inteligência quando o racista quer sugerir que não o é!

 

A meritocracia é um discurso falacioso!

E muitos desses “actos”(verbais) paternalistas que me irritam advêm do discurso da falácia: de que a cor não importa – que o que importa é o mérito. Não se percebe a odiosa perversão deste pensamento, acredito que muitos deles imbuídos de alguma bondade: os que não se tornam visíveis é porque não têm mérito! Portanto, parte-se do princípio de que a ausência de determinado segmento se deve à sua incompetência, à sua inépcia. Isso é válido tanto para as mulheres quanto para qualquer minoria (falo de “minoria sociológica”, claro, na esteira de Albert Memmi, porque sabemos que quantitativamente a mulher não é minoria nenhuma).

Mas há quem exiba esse argumentário do mérito de forma pretensiosa e preconceituosa mesmo porque, bem lá no fundo, assume que  um “minoritário”  tem de ser melhor para ocupar um cargo. Ora, pergunto: quantos medíocres da “maioria” não estão em lugares para os quais se exige um “minoritário” muito competente? Por que razão um “minoritário” (seja ele mulher, negro ou outro qualquer) tem de ser melhor para ocupar um cargo para o qual nunca se fez a mesma exigência ao “maioritário”?!

O verdadeiro benefício da democratização dos meios de informação e dos media só se faz real quando superada a barreira da exclusão representativa. Portanto, não se trata, apenas, de uma questão social. Por isso é minha opinião de que a sociedade, o Estado em primeiro lugar, tem de arranjar formas de reverter o estado de coisas, dessa total invisibilidade do Outro nas esferas sociais e se as quotas forem um desses meios, concordo. As quotas, quanta polémica! As quotas obrigam as instituições a olharem para a ausência de segmentos importantes da sociedade e isso é uma forma de equidade rumo à igualdade. Nunca me simpatizei lá muito com o slogan que já fez história “Todos diferentes, todos iguais”. Acho-o enganador: é que não pode haver igualdade sem equidade. É claro as quotas têm de ser vistas como estratégias temporárias. Quando falamos, numa sociedade marcada pela multietnicidade e multiculturalidade (como já o é a portuguesa), de coexistências de grupamentos etnoculturais, religiosos ou socioculturais, isto é, de categorias diferentes – estamos a falar de poder (e existem várias categorias de poder, não sendo o poder cultural dos menos portentosos poderes).

O interessante é que os maiores opositores ao sistema das quotas nunca se insurgiram contra as razões que levaram ao seu aparecimento: uma extrema desigualdade, uma obscena subalternidade do Outro! Já me consideraram beligerante pelo facto de eu dizer que a representatividade é o meio para o exercício do direito de todos os segmentos de uma sociedade em se verem representados nos vários lugares visíveis da sociedade, para que os representantes desses segmentos possam discutir interesses gerais de sua identidade grupal ou individual, interesses de seus “membros” relativos à sua presença na paisagem nacional, nas suas diferentes vertentes e lugares. A representatividade é terapia até contra a baixa estima de grupos e segmentos subalternos. Serei beligerante por dizer isso? Paciência, porque continuarei a dizer isso. Até que me convençam do contrário.

____________

 

Inocência Mata

Doutorada em Letras pela Universidade de Lisboa, com pós-doutoramento em Estudos Pós-Coloniais pela Universidade de Califórnia, Berkeley. Professora da Universidade de Lisboa e da Universidade Macau. Natural de São Tomé e Príncipe, é autora de diversos livros sobre culturas e literaturas africanas e sobre a teoria pós-colonial, entre os quais: “A Literatura Africa e a Crítica Pós-colonial: Reconversões” (2013), “A Rainha Nzinga Mbandi: História, Memória e Mito” (2012), “Francisco José Tenreiro: as Múltiplas Faces de um Intelectual” (2011), “Ficção e História na Literatura Angolana” (2010), “Polifonias Insulares: sobre Literatura e CULTURA DE São Tomé e Príncipe” (2010), “Laços de Memória & Outros Ensaios sobre Literatura Angolana” (2006); “Literatura Angolana: Silêncios e Falas de uma Voz Inquieta” (2001); “Diálogo com as Ilhas: sobre Cultura e Literatura de São Tomé e Príncipe” (1998), para além de outras em co-autoria.

Francisca Van Dunem

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