A ideia de que há seres humanos superiores e inferiores, de que estes estão totalmente à mercê dos primeiros fez, ao longo da História, milhões de vítimas. A escravatura, a colonização, o “apartheid”, a “segregação racial”, o holocausto, as “limpezas étnicas” são apenas alguns dos exemplos mais próximos, historicamente. Ter uma determinada cor de pele, pertencer a um certo grupo ou género, foram motivos que incendiaram ódios que, por sua vez, levaram a situações penosas, nomeadamente tortura e morte. É impossível não nos sentirmos horrorizados com as “experiências médicas” e de eugenia feitas no tempo do nazismo, nomeadamente as realizadas por J. Mengele com cerca de 1500 gémeos. Indivíduos considerados como “indignos de viver”, deficientes mentais, idosos, homossexuais, ciganos e outros foram usados em experiências e mortos, num total de 70 000, só no programa Acção T4. Para além disso, 400 000 pessoas foram sujeitas a esterilização. Para não falar do programa de reprodução forçada “Lebensborn”…
Ilusoriamente pensámos que o século XXI afastaria dos seres humanos esta faceta bruta e ignóbil.
Reconhecemos agora que nos enganámos. De novo, as garras do ódio se colocam de fora e os ratos saem dos esgotos. Alguns dos recentes acontecimentos na Europa e também em Portugal mostram que temos muitas razões para estar alerta. Não podemos voltar a dizer que não vimos, não ouvimos, não sabíamos. Está aí, ao virar de cada esquina, em qualquer “noticiário” de TVs CM e outros, na vox pop dos ignorantes que grita “mata, esfola”, nos frequentadores de redes sociais, nos “gorilas” de qualquer discoteca, no culto da violência barata que inunda o quotidiano…
E a verdade é que avançamos muito! Nas últimas décadas do século XX, quer os desenvolvimentos da Genética, quer das Ciências Sociais e Humanas, nomeadamente da Psicologia Social e dos estudos sobre a alteridade, têm contribuído grandemente para mostrar a inexistência de raças e para apresentar a nossa identidade como múltipla, não monolítica e, portanto, constituída por uma pluralidade de elementos (a origem geográfica, a religião, a profissão, a participação em atividades culturais, desportivas, políticas e outras). Cada ser humano é constituído por uma rede de identidades, sempre em relação com a sua história de vida.
Sabemos que, para dar conta da realidade que é muito complexa, o cérebro humano adopta uma estratégia cognitiva que consiste em incluir em categorias significativas e que sejam facilitadoras da interacção social os objectos e também os indivíduos – categorização social – destacando uma ou outra característica que pode ser, o sexo, a cor da pele, a religião. Este processo sendo facilitador da vida social tem, no entanto, uma vertente negativa pois está associado à constituição dos estereótipos. E, ao incluirmos os outros num certo estereótipo estamos a diferenciar-nos deles e a esquecer a individualidade de cada um, como se ela desaparecesse no todo.
Frequentemente, esta atitude leva a que tratemos cada ser como se ele fosse só a característica que associamos ao grupo e como se a sua identidade não fosse (como é) múltipla e sujeita a mutações e a reinvenções. Este procedimento está na base de todas as discriminações e, portanto, também do racismo. Valorizamos o nosso grupo (endogrupo) o “nós”, como superior e colocamos os “outros” (exogrupo) como inferiores. Há aqui também um mecanismo de “essencialização” dos indivíduos, considerando que as suas diferenças são hereditárias, fixas e inalteráveis e esquecendo o processo dinâmico de constituição das identidades.
Pergunta-se: apesar deste avanço no conhecimento, como explicar que o racismo volte a manifestar-se e a causar vítimas? Quando a Declaração Universal dos Direitos Humanos (que será celebrada a 10 de Dezembro) se aproxima dos 69 anos, como explicar que a divisão entre “nós” e os “outros” se acentue em vez de se atenuar? Quando aprenderemos a viver em conjunto?
Cabe a todos, cidadãos, responsáveis políticos, instituições (escolas, empresas, etc), cientistas, filósofos, (re)pensar com urgência estas questões. Na verdade, o racismo já deixou de se esconder: sai à rua e, como sempre na História, continua a matar.
Adaptado do texto publicado no Jornal Brados do Alentejo, Nov, 2017