Com os primeiros sinais de alívio da pandemia e a aproximação do final do ano, a Comissão Europeia reabriu o debate para rever as regras orçamentais quando falta pouco mais de um ano para terminar a suspensão da regra que impõe limites ao défice e à dívida pública dos estados-membros, mesmo depois das mais recentes notícias darem conta de um alargamento até Junho do próximo ano.
O que está em causa é a aplicação da famigerada regra que consagra limites aos défices anuais e ao endividamento acumulado e que até a insuspeita OCDE em tempos alertou que poderia revelar-se “económica e politicamente excessiva”. É que por muito que se entenda e se possa concordar com a ideia de não deixar escalar o endividamento público, não foi produzido até hoje qualquer trabalho científico (ou sequer empírico) que fundamente a regra orçamental do limite de 3% para o défice anual e de 60% do PIB para o endividamento total.
O próprio relatório de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, publicado em 2010 pelo National Bureau of Economic Research sob o título de «Growth in a Time of Debt», concluindo que o elevado endividamento público está na origem do fraco crescimento económico e que tem servido de argumento aos defensores das políticas de austeridade que grassam por esse mundo fora, contestado desde a primeira hora por outros investigadores que se interrogavam se não seria o fraco desempenho das economias a condicionar o aumento do endividamento, veio a ser seriamente abalado em 2013, por um novo estudo que descobriu um erro no tratamento dos dados que conduziu à conclusão da existência duma forte correlação entre elevadas dívidas públicas e reduzido crescimento económico que sustenta as políticas de austeridade, revelando o recurso abusivo a conclusões politicamente “agradáveis”.
Mas ainda mais grave que a revelação desta desonestidade é a origem da regra orçamental (3% para o défice e 60% do PIB para o endividamento) que remonta à França de 1981 quando François Mitterrand pediu um critério para impor limites aos seus ministros mais gastadores e esta “encomenda” foi transmitida não a um comité de sábios mas a um alto funcionário da Direcção do Orçamento que, segundo contou em 2012 numa entrevista ao Le Parisien, não demorou uma hora para formular a ideia dos 3%, baseando-se num mero raciocínio de eliminação: 1% era impensável, 2% era muito pouco e podia nem sequer repor a inflação, logo a solução era 3%. Fixado o limite para o défice e como na época a inflação rondava os 2%, igualmente fácil foi chegar aos 60% do PIB (3 x2 ao logo de 10 anos) como limite ao endividamento.
Et voilà! Simples, eficaz e quase mágico.
Hoje seguimos uma regra dogmática, que ameaça voltar rapidamente e em força para infernizar a vida do comum dos mortais, desprovida de qualquer sentido (na melhor das hipóteses será tão válida quanto qualquer outra) e sem o menor rigor técnico ou científico.
Em nome de um princípio de equilíbrio e seguindo argumentos falaciosos ou regras espúrias chegou-se a impor a consagração constitucional de um absurdo, designado como regra de ouro, e no debate que entre nós decorreu houve quem, como o primeiro-ministro da época (Passos Coelho), afirmasse, sem rebuço ou simples pudor, que a regra de ouro não é de esquerda nem de direita, transformando um absurdo numa via para distinguir os “bons” defensores das políticas de “austeridade expansionista” dos “maus” perdulários e esbanjadores dos fundos públicos. O afã maniqueísta revelado por neoliberais e monetaristas para impor uma regra pseudo-tecnocrática, criada à revelia das populações europeias por aqueles que primeiramente desrespeitaram as regras orçamentais consignadas no Tratado de Maastricht – recorde-se que foram a mui ortodoxa Alemanha e a França, sua aliada circunstancial, os primeiros estados a violar o limite dos 60% do PIB para o endividamento e dos 3% para o défice público – sem que então tal acarretasse qualquer problema ou mera ameaça das sanções que sempre se mostram lestos a aplicar aos mais fracos.
É que disfarçar opções de estrita natureza política sob a capa de valores técnicos, como é o caso da imposição de limitações orçamentais à intervenção pública na economia, não constitui apenas uma desadequada solução para os desequilíbrios que as economias teimam em apresentar, pois ao agravá-los e ao proibir qualquer actuação contrária aos dogmas neoliberais representa uma condenação para as gerações futuras que tanto dizem pretender defender do esbanjamento dos dinheiros públicos. Confundindo investimento público produtivo com gastos sumptuosos (prática a que todos os governos tendem a recorrer), escamoteando que a verdadeira origem do endividamento público deriva das políticas fiscais orientadas para a redução dos impostos sobre os lucros e os ganhos de capital (em nome do beatífico benefício do investimento privado que se reflecte, não na economia nacional mas nos paraísos fiscais) e que aquele tipo de endividamento é de grande interesse para a aplicação de capital sem risco (tão do agrado dos mesmos que beneficiando das reduções fiscais passaram a dispor de maiores quantias para aplicar), continuam a querer convencer-nos que a única via é limitar a possibilidade de futuros governos praticarem políticas melhor orientadas para o interesse geral.