A ‘Conferência sobre o Futuro da Europa’ está prestes a terminar os seus trabalhos. Pedindo emprestado o nome à “Convenção sobre o Futuro da Europa” de Giscard d’Estaing; partilhando com esta o quadro e os métodos e discutindo as mesmas questões, ela não propõe uma Constituição para a Europa, mas, no entanto, contém mudanças institucionais mais radicais, nomeadamente a introdução de um distrito eleitoral europeu, ou seja, um sistema eleitoral em que a territorialidade (local, regional ou nacional) deixaria de ser tida em conta. Este círculo eleitoral tornar-se-ia único após um período de transição, durante o qual os círculos eleitorais territoriais continuariam a ser autorizados.
Tudo começou em novembro de 2019, com um ‘não-documento’ franco-alemão sobre o qual as instituições europeias se entenderam para lançar a conferência. A sua organização é gerida por um ‘consórcio de prestadores de serviços externos contratados pela Comissão’, responsável pela seleção dos oitocentos membros da conferência, divididos em quatro painéis, com base em critérios aleatórios, respeitando o equilíbrio geral da população (embora inclinado para os jovens, dado que um terço dos participantes tem de ter entre 16 e 25 anos). A equipa editorial é composta por membros do consórcio.
Um dos quatro painéis intitula-se ‘Democracia Europeia/Valores e Direitos, Estado de Direito, Segurança’ e está dividido em cinco vertentes; é guiado por vinte e um especialistas, uma quinzena de ‘facilitadores profissionais’ e um grupo de 38 ‘verificadores de factos’. Dos 200 cidadãos selecionados, 162 teriam participado na terceira sessão, a participação em sessões anteriores não foi publicada.
O texto elaborado pelo consórcio de prestadores de serviços externos está bastante desequilibrado quanto à importância, cobertura política, peso e o sentido das suas recomendações; a mais significativa politicamente sendo a décima sexta, que tem por objectivo estabelecer uma única circunscrição eleitoral nas eleições europeias.
Há mais de vinte anos que o Parlamento Europeu tem defendido, em várias versões, este círculo eleitoral, como se afirma numa publicação dos seus serviços. O seu título: ‘Europeizar as eleições europeias’ dá a explicação fundamental para a proposta; para que a eleição seja ‘verdadeiramente europeia’ – com uma ‘campanha verdadeiramente europeia’ liderada por ‘candidatos verdadeiramente europeus’ que conduziriam uma ‘verdadeira competição europeia’ – a Europa teria de se livrar de qualquer outra identidade territorial, através da criação de uma ‘demos europeia’.
O Tratado da União Europeia proclama o respeito pelos ‘valores universais dos direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, da liberdade, da democracia, da igualdade e do Estado de direito’. A reivindicação europeia destes valores como património próprio do continente é, no mínimo, questionável.
Mas, em todo o caso, tudo o que sabemos sobre a democracia grega aponta para o papel central do território na democracia. Os ‘demoï’, na base do sistema democrático, são as aldeias, no sentido tanto de localizações geográficas como de comunidades humanas, um significado que sobreviveu, por exemplo, na língua espanhola ou no português dialectal (pueblo/povo significando tanto o povo como a aldeia).
Para além do debate sobre o património, a dupla consideração dos valores universais e das suas supostas fundações europeias deu origem a uma ideia ambígua de que os europeus devem respeitar os valores universais existentes e também reinventá-los de ‘maneira europeia’. Ou seja, trata-se de ‘europeizar’ a democracia!
Além disso, o texto da conferência confunde ‘identidade’ e ‘valores’. Enquanto a criação de uma nova identidade (sendo a mais famosa, a do novo ser humano soviético) é uma característica típica dos poderes totalitários, as democracias não visam criar novas identidades, mas sim respeitar as identidades existentes num conjunto de valores (por exemplo, valores universais) que as restringem a formas compatíveis com o respeito mútuo.
Isto aplica-se aos Estados nacionais, mas ainda mais a uma construção supranacional como a União Europeia; a preocupação recorrente com uma suposta falta de identidade europeia expressa nos textos europeus, como a que está actualmente a ser avaliada, é, por si só, preocupante.
Quanto às grandes democracias federais que podem ser consideradas exemplos para a União Europeia (Índia, Estados Unidos ou Brasil), nenhuma delas tem uma única circunscrição eleitoral e não há vestígios de um debate que ligue a ‘Indianidade’, a ‘Americanidade’ ou a ‘Brasileiridade’ a essas circunscrições eleitorais.
Tendo em conta que a liberdade de associação dos cidadãos em partidos políticos faz parte da organização democrática e que o bom funcionamento das instituições europeias, na maior parte das tradições institucionais europeias, requer a existência de partidos políticos europeus funcionais, não há razão para crer que o apagamento das circunscrições determinadas espacialmente facilitaria esta tarefa.
O sistema político mais famoso pelo seu círculo eleitoral nacional único, o de Israel, produz uma das representações mais fraccionadas conhecidas no mundo democrático. Israel é um pequeno país com 120 representantes; só se pode imaginar um resultado ainda mais fracturado numa realidade como a União Europeia, que elege mais de 700 representantes. Este sistema contrariaria as próprias intenções de facilitar a governação europeia.
Impor barreiras artificiais à criação de partidos europeus, a fim de garantir a eficácia de um sistema deste tipo, correria naturalmente o risco de restringir fundamentalmente a liberdade fundamental dos cidadãos de se organizarem em partidos políticos.
O movimento de representação proporcional desenvolveu-se em conjunto com o movimento democrático moderno. A ‘Fundação para a Representação Proporcional’ considera Thomas Wright Hill, o inventor do sistema de ‘voto único transferível’, como o seu principal antepassado. O movimento desenvolveu-se noutras partes do mundo essencialmente de forma independente e tornou-se de importância crucial graças à Associação Reformista para a Adoção da Representação Proporcional criada na Bélgica em 1881, com Victor d’Hondt como um dos fundadores. A Bélgica tornou-se em 1899 o primeiro país do mundo a adoptar um sistema proporcional, conhecido como o sistema d’Hondt.
O sistema d’Hondt é amplamente utilizado em todo o mundo e é também o método utilizado pela maioria dos Estados-Membros para as eleições para o Parlamento Europeu, bem como para as eleições internas no seu seio. O sistema proporcional está normalmente associado a circunscrições eleitorais definidos no espaço.
Hoje em dia, existem sistemas maioritários e proporcionais em várias democracias. Talvez a distinção mais importante esteja no conceito dominante de democracia. A tese principal de Karl Popper, em ‘A Sociedade Aberta e os seus Inimigos’, é a de que uma democracia se define pela possibilidade de nos livrar de maus governos em vez de pela garantia de bons governos. Isto requer necessariamente um sistema maioritário e não proporcional. Num pequeno artigo escrito para ‘The Economist’ em 2016, Popper apresenta o argumento de forma mais precisa.
Habermas foi o filósofo político contemporâneo mais influente da Europa. O consenso, a democracia deliberativa e o patriotismo constitucional são elementos-chave do seu discurso. No entanto, ele não se apresenta como mais favorável a sistemas eleitorais proporcionais do que a sistemas maioritários.
A este respeito, o chamado ‘sistema eleitoral alemão’ – que é antes um legado da presença britânica na Alemanha de após a Segunda Guerra Mundial – é um sistema que combina elementos dos sistemas maioritário proporcional, e é visto favoravelmente em vários países.
Assistimos à proposta de outros sistemas eleitorais e de discussões sobre eles; no entanto, tanto quanto sei, nenhuma das propostas visa apagar comunidades territorialmente definidas do processo de representação.
Além disso, praticamente todas as opiniões e propostas discutidas em Portugal dizem respeito à necessidade de reduzir a dimensão dos círculos eleitorais existentes – eventualmente tornando-os uninominais – a fim de assegurar uma melhor ligação entre eleitores e eleitos. Isto é completamente contrário à essência do que nos está a ser proposto.
Embora a democracia deliberativa seja defendida por Jürgen Habermas e pela maioria dos filósofos políticos contemporâneos, pode-se naturalmente considerar a representação por cidadãos aleatoriamente escolhidos como uma alternativa exequível, sabendo que era esse o método preferido utilizado nas democracias da Grécia Antiga. Isto é, naturalmente, assim, desde que a triagem desses cidadãos seja feita de forma fundamentada, transparente, imparcial e rigorosa, o que não aconteceu nesta Conferência sobre o Futuro da Europa.
Os princípios e procedimentos democráticos podem, naturalmente, ser alterados, melhorados e repensados, mas não podemos esquecer que a preocupação mais importante deve ser a sua proteção contra a manipulação. Hitler não revogou a Constituição de Weimar, apenas a deformou tornando-a irreconhecível.
A Europa não precisa de autoridade para criar uma nova identidade para si própria. As identidades evoluem, adaptam-se e podem ser reforçadas pela realidade. É certo que nada contribuiu mais no passado recente para aproximar os europeus uns dos outros do que os acontecimentos dramáticos que estão a ocorrer actualmente na Ucrânia.
Na análise institucional comparativa não se encontram quaisquer argumentos para apagar a territorialidade de um sistema eleitoral democrático europeu. As instituições democráticas orientadas por valores humanistas universais não devem preocupar-se em apagar identidades comunitárias decorrentes da sua dimensão espacial. As reformas dos sistemas eleitorais devem seguir as regras e os procedimentos democráticos.
PS
Uma versão mais extensa deste texto, pode ser encontrada, em inglês.
Se as instituições europeias tivessem estado atentas ao ‘futuro da Europa’ não teriam só acordado no dia 24 de fevereiro de 2022 para a agressão imperial de que a Europa foi alvo.