Entre as leituras de Bernard-Henry Lévy (Este vírus que nos enlouquece), de Ivan Krastev (O futuro por contar) e das notícias que diariamente nos assolam começa a emergir a necessidade de olhar e reflectir além da espuma dos dias e das notícias mais catastrofistas.
Assim, a mudança dos discursos no sentido de fomentar a substituição do capitalismo de consumo pelo capitalismo verde, sem prejuízo do objectivo principal que é o da manutenção do processo de transferência e concentração da riqueza, está a tornar cada vez mais evidente uma grande concertação entre o Fórum Económico Mundial (organização sem fins lucrativos sediada em Genebra, mais conhecida pelas suas reuniões anuais na estância suíça de Davos, onde reúne os principais líderes empresariais e políticos, bem como intelectuais e jornalistas escolhidos para discutir as questões mais candentes da actualidade mundial) e o FMI.
Esta organização financeira internacional – uma das duas instituições, a par com o Banco Mundial, criadas na sequência do Acordo de Bretton Woods – destinava-se a administrar e regular o sistema monetário mundial, mas que tem servido fundamentalmente para a defesa e preservação dos interesses do dólar norte-americano, parece encontrar nas agitadas condições da actualidade, no Fórum Económico Mundial e no apelo lançado pelo seu fundador, Klaus Schwab, no sentido de uma Grande Reinicialização, um perfeito eco para a reorientação ecológica explicada pela sua Directora-geral, Kristalina Georgieva, quando deu a sua visão do Grande Confinamento à Grande Transformação.
Embora seja elevada a probabilidade de a Grande Reinicialização (ou a Grande Transformação, na versão de Georgieva) ter sido proposta fundamentalmente como preocupação com a preservação do sistema capitalista – enquanto agita o slogan de uma sustentabilidade verde que outra coisa não parece ser senão a ideia de consumir tudo o que se possa apelidar “verde”, independentemente de o ser ou não, (algo que sempre parece moderno enquanto alivia as consciências) – assim como se, de repente, todos tivessem acordado para o problema das desigualdades e para a contestação do modelo de acumulação de capital que ao longo dos séculos tem transformado o mundo num lugar cada vez mais desequilibrado, onde impera uma crescente pobreza, fome, e miséria, a par com vulnerabilidades sanitárias, de que a Covid-19 é apenas a mais recente e que se tem revelado uma excelente ferramenta para provocar o bloqueio de uma economia mundial onde a Suécia parece ser uma das poucas excepções.
A par com a disseminação da covid-19 parece cada vez mais instalado um clima de medo, sempre alimentado pela catadupa de notícias que nunca esquecem de referir os tremendos números de óbitos e de novas infecções, escondendo a sua verdadeira dimensão ao apresentá-los de forma absoluta e sem grande contextualização, que se não inibe a necessária reacção tolhe, pelo menos, a indispensável reflexão. Ao disseminar o medo e ao usá-lo como meio de intimação das populações – importa não esquecer que este e a ansiedade se encontram entre as principais causas da maioria das doenças – está-se na prática a fragilizá-las e a vulnerabilizá-las a outro tipo de doenças, do mesmo modo que o estrito distanciamento social (proibição de reuniões e de outras formas de socialização e de solidarização) aumenta o nível do medo e impede o seu combate.
Para uma melhor contextualização note-se que a divulgação diária dos números de infectados e de mortos é invariavelmente feita em termos absolutos; para uma observação mais ajustada à realidade, recorde-se que a chamada gripe espanhola dizimou entre 30 a 50 milhões de pessoas nos anos de 1918 e 1919 enquanto os oito meses de duração da covid-19 contabilizam menos de 830 mil mortos, ou seja esta vitimou pouco mais de 100 mil pessoas por mês enquanto a primeira originou entre 1 a 2 milhões de mortes mensais.
Até no caso nacional uma simples consulta ao Portal da Vigilância da Mortalidade, da DGS, permite concluir que o número de óbitos observados no país durante o primeiro semestre deste ano pouco ultrapassa os valores registados em anos anteriores.
Numa aparente estratégia de apaziguamento, a ideia da Grande Reinicialização apresentada por Schwab propaga o que há muito já é sabido: o problema está na concentração da riqueza; mas enquanto o Fórum Económico Mundial põe a tónica no consumismo excessivo e na necessidade de ajustamento (equilíbrio) entre o consumo e os recursos disponíveis – a tal economia verde –, sem nunca estender a ideia da reinicialização a problemas como o do excesso de endividamento, o FMI fala na mudança para um capitalismo sustentável, qual New Deal Verde, esquecendo que aquele programa implementado na década de 1930 por Franklin D. Roosevelt para ultrapassar a Grande Depressão de 1929-1933, consistia em projectos de obras públicas, reformas financeiras e de regulamentos, que duraram até ao início da II Guerra Mundial, enquanto o agora proposto pouco ou nada de fundo pretende alterar. Na apresentação que dele fez à Câmara de Comércio Norte-americana, Kristalina Georgieva fala num sistema de mercado mais igualitário, mas também no facto desta crise levar a que quase 90% do mundo (170 países) vá ficar em pior situação e com um rendimento per capita mais reduzido, pois só no mês de Março foram transferidos cerca de 100 mil milhões de dólares (o triplo do valor transferido durante a crise financeira global da década anterior) das economias emergentes.
Esclarecido o facto de que o modelo de economia de mercado é para continuar, vejamos em que consiste o programa de três pontos apresentado pela Directora-geral do FMI. O primeiro, tem a ver com a resposta à paragem económica resultante das políticas de confinamento e a injecção mundial de 9 biliões de dólares de ajudas económicas e fiscais para assegurar a sobrevivência das economias (em especial as dos países mais desenvolvidos, como vimos) e as hipóteses de recuperação das principais empresas.
O caminho para a retoma, apresentado como o segundo ponto do programa, é visto como a grande reabertura da economia através de «…uma recuperação que está focada numa grande transformação conforme emergimos desta crise excepcional», algo que os seguidores do neoliberal Consenso de Washington (e o FMI tem sido ao longo do tempo e dos lugares o seu grande executor) sempre incluíram nos programas de reformas e ajustamentos que aplicaram nos diferentes lugares e épocas, com os desastrosos resultados conhecidos.
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