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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

O revolucionário João Gilberto

Urariano Mota, no Recife
Urariano Mota, no Recife
Escritor e colunista da Boitempo e do Direto da Redação. Colabora também com Vermelho, Carta Capital e Fórum.

As novas gerações não sabem, talvez nem imaginem o que era ouvir Chega de Saudade, na Rádio Tamandaré, no Recife de 1959. Nós, meninos suburbanos, parávamos tudo diante daquela interpretação. Como aquela voz era diferente e como era familiar ao mesmo tempo!

Nós não tínhamos explicação, apenas suportávamos as censuras dos vizinhos, da família, ao novo modo de cantar daquela voz baixinha. E sem forças ou iluminação para responder, virávamos o rosto à procura de uma saída, que não vinha. Somente mais tarde na juventude, no tempo da ditadura, pudemos receber uma luz para a revolução que foi o disco Chega de Saudade, em 1959. Então, com o estrondoso sucesso de Tom Jobim, com Chico Buarque, Caetano Veloso, o estranho veio ficar mais claro. Tudo pareceu vir daquele esquisito. João era mais que cantor e compositor e violonista: ele era semente da nova música popular brasileira.

E mais, percebemos depois. Dele, um homem de esquerda, veio a compreensão de assimilar a tradição dos sambistas que estavam marginalizados. Dele veio um modo de reinterpretar a tradição do samba, quando deu uma nota cálida, inteligente, sensível, a Geraldo Pereira, Wilson Batista, Ari Barroso, Caymmi, entre muitos. Quem não viveu esse tempo, como pode avaliar e sentir a mudança que houve em nossa canção?

Há quem entenda a palavra repercussão como o número de gravações vendidas de uma só música. Na verdade, penso que repercussão significa o que ‘repercute’ até hoje, que é objeto fecundante, composição a gerar filhos e filhas em toda a nossa música. Nessa aproximação do conceito vivo, seria bom que os vendedores de sucessos ouvissem mil e uma vezes Chega de saudade com João Gilberto. Não seria castigo.


João Gilberto, com Caetano Veloso e Gal Costa, em 1971

O autor de hits poderia fazer pausas, como um refresco do suplício, e nos intervalos bem poderia pesquisar de Milton Nascimento a Caetano, de Chico Buarque a Gilberto Gil, de Edu Lobo a Carlos Lyra, e outros ‘menores’ imensos da nossa riquíssima Música Popular Brasileira, para saber afinal qual a música que maior repercussão teve no trabalho de todos eles até hoje. Nos limites do Brasil, Chega de Saudade repercutiu mais que a Banda dos Corações Solitários do Sargento Pimenta no mundo.

O intérprete João Gilberto, com seu modo de cantar baixinho, que a maioria em 1959 reprovava “isso é lá cantor de rádio?!”, com o seu canto que era o oposto absoluto do vozeirão de Vicente Celestino, Francisco Alves, pois no Brasil da época o maior cantor seria aquele de voz de quebrar cristais no teatro, João Gilberto foi o cara que usou para cantar a técnica do microfone, que para ser ouvido não precisaria receber brados retumbantes. Ele incorporou para a música, para a interpretação, o que jazia apenas para ser transmitido a milhões de ouvintes. Com a sua voz, ele parecia perguntar: se existe microfone, pra que gritar pra madame?

O que uma vez escrevi sobre a crônica do rádio, sobre a leitura de um texto no rádio, veio de João Gilberto. Ao se ler diante do microfone um poema, uma crônica, as palavras têm que ser desentranhadas do seu casulo escrito. Isso quer dizer que a leitura exige recursos de ator, se por isso não entendemos o mau gosto das impostações de voz artificiais, ou, supremo mal dos males, as entonações melodramáticas. O texto deve ser interpretado com a voz que não passa a impressão de interpretar. Como dizer isso? – O texto merece uma interpretação natural, que se dê em um fluxo de conversa em uma sala, como um diálogo entre duas pessoas. Ainda que fale para milhões de pessoas, o locutor se dirige a um só ouvinte. Como um João Gilberto da fala.

Com a morte do nosso maior intérprete, não se vai um modo de cantar, não se vai uma genialidade de falar novo para os corações. A sua morte não define o seu fim. Ele continua com a revolução que espalhou dos compositores às cantoras, cantores, arranjadores, a tudo enfim que faz a nossa música imensa no mundo. Quem sabe se com o seu falecimento físico poderemos ouvir mais João Gilberto no rádio? Quem sabe se neste Brasil selvagem, estúpido de Bolsonaro, de destruição das conquistas brasileiras, teremos uma pausa para a sensibilidade e um carinho no coração?

Consola, se conseguirmos esse intervalo. Mas o que eu queria mesmo era ouvir Chega de Saudade como em 1959. E sei que isso não mais será possível. Fazer o quê? Escrever estas mal traçadas linhas apenas.

 


Texto em português do Brasil


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