Não há, pelo menos na experiência existente, conselhos de curadores hostis ao establishment. Muito embora já tenha acontecido que o conselho de curadores arbitre conflitos internos no establishment, por exemplo quanto à reelegibilidade de um reitor.
Essência da figura
O Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES) aprovado pela Lei nº 62/2007, de 10 de Setembro, a que nos referimos no Artigo anterior (“O Governo das Universidades e o RJIES”) publicado em 10 de Janeiro, dedicou todo o capítulo VI do seu título III, integrado pelos Artigos 129º a 137º a regular a criação e funcionamento de “Instituições de ensino superior públicas de natureza fundacional”.
No essencial eram previstas novas figuras denominadas fundações públicas com regime de direito privado a criar por decreto-lei, em regra mediante iniciativa de instituições do ensino superior, que transfeririam o seu património para a fundação, continuando as universidades – fundações a receber financiamento do Estado, para além de poderem receber outros apoios tanto do Estado como de entidades privadas incluíndo, segundo creio, dotações para reforço do seu capital.
Entre a tutela e os Conselhos Gerais / Reitores existiriam Conselhos de Curadores, criando uma espécie de “écran” entre a tutela e as instituições, mas a sua composição seria proposta pela instituição. Já tive ocasião de escrever:
Não há, pelo menos na experiência existente, conselhos de curadores hostis ao establishment. Muito embora já tenha acontecido que o conselho de curadores arbitre conflitos internos no establishment, por exemplo quanto à reelegibilidade de um reitor.
in Universidades em regime fundacional. Privatização ou fragmentação?
Pode alguém ser quem não é?
Não me parece que se possa dizer que esta solução para a qual vários Reitores foram atraídos porque comportaria uma maior flexibilidade de gestão, consubstancie uma privatização, embora possa ser gerida de forma a facilitar alianças com interesses privados.
Mas na medida em que estas fundações são de facto falsas fundações, que não obedecem ao modelo de instituição por um benemérito que afecta um determinado património à finalidade que prossegue, cobrindo-se os encargos de prossecução de actividade com o rendimento gerado pelo património, a sua criação não remete o seu funcionamento para um quadro estabilizado e pacífico, mas tem gerado a necessidade de em múltiplas ocasiões, seja a aprovação de códigos de contratação pública, seja a publicação de medidas de disciplina orçamental, salvaguardar excepções relativas a estas fundações que não são bem institutos públicos nem fundações.
A seguir à publicação do RJIES aderiram ao modelo a Universidade do Porto, o ISCTE-IUL e a Universidade de Aveiro. Na então Universidade Técnica de Lisboa a questão foi discutida mas a votação maioritária do Conselho Científico do Instituto Superior Técnico contra arrumou a questão. A Universidade do Minho inclinava-se para aderir, mas a formação do Governo de Pedro Passos Coelho congelou o processo.
É de ter em conta que a viragem política da altura foi muito determinada pela crise financeira e pela onda de críticas a multiplicação de institutos públicos, entidades públicas empresariais e fundações. Na raiz destas críticas estava alguma percepção difusa de que estas situações abrangiam esquemas para melhor remunerar funcionários e dirigentes de serviços públicos e que se poderiam extingui-las e alcançar grandes poupanças. Não era exactamente assim, aliás qualquer serviço com personalidade jurídica é tecnicamente um instituto público e nem todos estavam dotados de estatuto quase empresarial, e as entidades públicas empresariais formadas situavam-se sobretudo no âmbito municipal, em que a legislação permissiva era muito recente, tendo sido adoptadas medidas restritivas. Quanto às fundações, cuja maioria era efectivamente privada e foram objecto de um estudo liderado pelo então Secretário de Estado da Administração Pública Helder Rosalino reverteram-se alguns processos de “externalização” de serviços, convertidos em fundações sob o governo José Sócrates, reduziram-se numa percentagem uniforme alguns apoios financeiros, mas as universidades públicas – fundações não foram tocadas. Todavia, como era lógico, ficaram enquadradas para efeitos orçamentais no perímetro de consolidação da Administração Pública.
Aquando de nova mudança de ciclo político, o Ministro Manuel Heitor reactivou a conversão da Universidade do Minho em fundação – tendo o Instituto Politécnico do Cávado e do Ave obtido para si a mesma transformação – e a Universidade Nova de Lisboa também aderiu para o que terá sido decisiva a promessa de um melhor estatuto remuneratório dos docentes, aliado à mudança. A Universidade de Coimbra resistiu ao processo lançado pelo então Reitor. A esquerda – PCP e BE – que não pressionara sob o governo Passos Coelho no sentido da extinção das universidades – fundações encontrou perante si uma maioria PS-PSD-CDS contra a reversão do processo. É claro que se estas universidades começarem a tomar partido das possibilidades do seu estatuto, por exemplo a endividarem-se, como aconteceu para a construção do projecto das instalações da Nova SBE, tenderão a gerar-se novas dinâmicas e novas reacções.
Vital Moreira e a nostalgia do Terceiro Sector
Vital Moreira que, enquanto coordenador do Grupo de Trabalho para os Institutos Públicos, cujo Relatório e Proposta de Lei-Quadro fora apresentada em 2001 tinha sido altamente crítico das formas imaginativas de que a definição de estatutos de alguns institutos tinha apresentado, apresentou-se aqui como defensor desta fuga para o direito privado, chegando numa comunicação apresentada no ISCTE no âmbito de um processo de debate promovido pelo Conselho Nacional de Educação a sugerir que as universidades públicas reivindicassem o estatuto de entidade pública empresarial para obterem o de fundação.
A agenda de Vital Moreira seria até mais ampla uma vez que na mesma altura sugeriu que o modelo fundacional fosse também genericamente aplicado às instituições privadas, creio que como forma de subtrair o conjunto das universidades às suas lógicas tradicionais, as públicas à lógica da Administração e as privadas à lógica das organizações lucrativas, ficando ambos os segmentos integrados numa lógica de terceiro sector.
Não me parece que esta orientação imunizasse as instituições universitárias privadas contra certo tipo de dificuldades que por vezes se lhes têm colocada. A princípio muitas das entidades instituidoras assumiram a forma de cooperativas, o que não evitou lutas pelo poder e escândalo público. O estudo coordenado por Helder Rosalino a que fiz referência encontrou aliás no grupo das fundações duas que eram titulares de universidades privadas – a Fundação Minerva, titular das Universidades Lusíadas de Lisboa, Porto e Famalicão e a Fundação Fernando Pessoa – que recebiam ambas, e recebem, apoios financeiros do Estado, ao contrário do que sucede com a generalidade das instituições privadas.
Relações laborais nas Universidades – Fundações
A possibilidade de ter pessoal docente sem vínculo de função pública parece, para as universidades públicas constituir um toque de autenticidade de uma completa autonomia. A Lei nº 108/88, de 24 de Setembro, previa no seu Artigo 15º:
- Para além do pessoal referido no estatuto das carreiras docente universitária e de investigação e nos quadros anexos às respectivas leis orgânicas, as universidades podem contratar, em termos a definir por lei e nos respectivos estatutos, individualidades nacionais e estrangeiras para o exercício de funções docentes ou de investigação, bem como outro pessoal para o desempenho de actividades necessárias ao seu funcionamento.
- As contratações a que se refere o número anterior não conferem, em caso algum, a qualidade de funcionário público ou de agente administrativo.
Se era para atribuir ou não melhores condições de remuneração e de exercício de funções, ficou envolto em penumbra. Recordo-me de já no tempo de Mariano Gago ter estado numa reunião nas Laranjeiras com um assessor do Ministro, em representação, com outro colega, do SNESup, e estando também presente um representante da FENPROF, discutindo um projecto de diploma, que (felizmente) não chegou a sair, em que se permitiam contratações com contrapartida em receitas próprias, caducando os contratos se estas se tornassem insuficientes…
O Ministério terá até manipulado uma missão da OCDE que veio a reportar que os docentes eram funcionários do Estado e não funcionários das Universidades, apesar de a relação jurídica de emprego público se estabelecer com as Universidades, e veio a incluir no RJIES, na parte do RJIES relativa ao regime fundacional, Artigo 134º:
- No âmbito da gestão dos seus recursos humanos, a instituição pode criar carreiras próprias para o seu pessoal docente, investigador e outro, respeitando genericamente, quando apropriado, o paralelismo no elenco de categorias e habilitações académicas, em relação às que vigoram para o pessoal docente e investigador dos demais estabelecimentos de ensino superior público.
- O disposto no número anterior entende-se sem prejuízo da salvaguarda do regime da função pública de que gozem os funcionários e agentes da instituição de ensino superior antes da sua transformação em fundação.
Desta forma, o Estado passava a consentir às universidades – fundações uma fuga ao paralelismo com as carreiras do ensino superior público apesar de impor tal paralelismo ao superior privado. Especulou-se na altura se iriam ser atribuídas estrelas aos catedráticos, mas tem-se assistido sim a derrogação de exigências como a de doutoramento para chegar na Universidade do Porto a Professor Auxiliar e a da agregação para chegar na Universidade Nova de Lisboa a “professor catedrático em regime de direito privado” assim se chama no regulamento publicado a categoria em causa.
A questão de saber se os vínculos de direito privado são mais precários que os de direito publico, já ocupou lugar no espaço público com Luís Reto a dizer em sessão no Instituto Politécnico de Leiria que os contratos administrativos de provimento é que eram precários e os sindicatos docentes a considerarem os contratos de direito privado como sendo sempre mais precários que os do público.
O SNESup conseguiu adiar sine die o futuro visualizado por Mariano Gago ao ver aprovado, na introdução de alterações pela Assembleia da República aos diplomas que em 2009 procederam à revisão dos Estatuto da Carreira Docente Universitária e da Carreira do Pessoal Docente do Ensino Superior, que as instituições de ensino superior em regime fundacional pudessem continuar a contratar o seu pessoal docente em regime de contrato de trabalho em funções públicas.
Tenho defendido que se poderia ter reservado a contratação em direito privado para o pessoal fora da carreira – mesmo nas instituições sem regime fundacional – na medida em que poderia vir, nos termos do Código do Trabalho, a ser contratado por tempo indeterminado por mero decurso de tempo, embora sujeito às causas de extinção do posto de trabalho previstas no Código, e continuar a contratar o pessoal de carreira no actual regime, evitando a fragmentação.
No entanto as instituições não quiserem ir por esse caminho, e os sindicatos terão entrado em desorientação estratégica, pelo que o que veio a suceder, pelo menos no caso das Universidades do Porto e Nova de Lisboa, foi a tentativa de enxertar nos Regulamentos relativos ao pessoal docente em regime de direito privado mecanismos de precariedade típicos dos Estatutos de Carreira, mantidos tanto na sua revisão de 2009 como na própria alteração parlamentar de 2010, tais como a renovação indefinida dos contratos a termo dos convidados, que no caso da Universidade do Porto já terá sido posta em causa pelos tribunais, e a introdução nos contratos dos professores auxiliares de períodos experimentais de cinco anos, inadmissíveis em termos de Código do Trabalho.
O Regulamento da Universidade Nova de Lisboa aprovado em 2018 foi mais longe, quase parecendo um projecto de novo Estatuto de Carreira Docente Universitária com terminologia diferenciada da actual (ex. “dedicação plena” em vez de “dedicação exclusiva”, “tempo completo” em vez de “tempo integral”) e mecanismos de controlo inexistentes neste (por exemplo a manutenção ou retirada do regime de dedicação plena em função da avaliação de desempenho), com uma escala de remunerações mais generosa – cuja promessa foi decisiva para “vender” a ideia de transformação em fundação – e uma forte pressão para que os docentes contratados em regime de contrato de trabalho em funções públicas renunciem – com carácter definitivo – a essa condição. “Ouvidas”, é claro as associações sindicais.
Chegado aqui, diria que as associações sindicais deveriam já ter um balanço da experiências das universidades – fundações, e sobre se se vive ou não melhor nelas, apoiado obviamente em inquéritos aos docentes (a rede de delegados sindicais tornou-se praticamente inexistente) mas também em dados colhidos em balanços sociais e em relatórios de gestão: quantos docentes e investigadores vivem em cada uma delas em regime de direito público e em regime de direito privado, sob que vínculos, quantos optaram por regime de direito privado renunciando definitivamente ao regime de função pública, quantos dos colegas que exerciam funções como investigadores – bolseiros ou professores convidados e finalmente são agora, com justa satisfação, “professores auxiliares” ou “professores universitários” sem especificação, foram integrados em regime de direito privado.
Não encontrei tal balanço e lendo outro dia o programa de candidatura da actual Direcção do SNESup também não encontrei nem na análise de situação nem nas propostas de actuação qualquer palavra sobre as instituições em regime fundacional. Isto há-de querer dizer alguma coisa.
A própria Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES) recebeu logo de início estatuto de fundação pública de direito privado.
Poderiam sê-lo também por iniciativa de uma escola isolada, o que foi na altura lido como uma forma de Mariano Gago favorecer a transformação do Instituto Superior Técnico em fundação.
“Universidades em regime fundacional. Privatização ou Fragmentação?”, Comunicar, 27-2-2017”.
Referia-me em especial ao caso concreto da reeleição do Reitor do ISCTE-IUL, Luis Reto, que acabou por ganhar a causa nos Tribunais, cumprir mais um mandato, e aposentar-se como Reitor, não conseguindo contudo fazer-se suceder pelo seu Vice-Reitor.
Vital Moreira tem sido ultimamente referenciado como Professor nesta última.
Acredito que no caso da Universidade do Porto tenha havido interferência do Ministério de tutela pois que o regulamento inicialmente aprovado previa um período experimental de 240 dias, como decorrente do Código do Trabalho.
Regulamento n.º 409/2018, publicado no DR, 2º serie, de 6-7-2018.
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