E, pelos vistos, dá nova entrevista ao “Expresso”, na próxima semana. Pergunta: o que mudou, para decidir mostrar-se de forma tão intensa e expressiva?
Juiz Carlos Alexandre
Na verdade, esta foi uma entrevista sobre o Juiz, mas também sobre o cidadão que desempenha essa função. E ficou-nos a ideia de alguém simples, comum, igual a qualquer outro. Juiz de primeira instância que nunca escreveu um livro; que não tem pós-graduações; que trabalha aos fins de semana para poder pagar os encargos; que não faz férias há dez ou doze anos; que chega cansado a casa e ainda vai ouvir “escutas” depois de jantar; que não pode ir comer a restaurantes; que tomou “óleo de fígado de bacalhau em bicha de pirilau” quando era pequeno; que é um “bicho-do-mato” ou “o saloio de Mação”; que aceita com tranquilidade o que o destino lhe reservar; que é alguém que tem poucos amigos e a quem a figura de Jesus Cristo fascina; que vai regularmente às festas da sua terra e às procissões; que só procura a verdade; que não é um super-juiz, um justicialista ou uma vedeta, mas simplesmente um homem que “faz apenas o seu trabalho” de forma séria e honrada – em suma, que é um homem normalíssimo, com algumas limitações e com algumas virtudes. Como todos.
A entrevista, de um modo geral, respeitou o guião, se era disso que se tratava. Diria que, se este era o objectivo, lhe correu relativamente bem. A generalidade das pessoas certamente apreciou o personagem. Poder-se-ia dizer: “Afinal, o homem é como um de nós!”. A identificação com o homem comum foi, na minha opinião e salvo alguns pozinhos de sacristia e de contida vaidade, conseguida!
Alguns deslizes
Teve, todavia, alguns deslizes (intencionais ou não). Referiu que não tem amigos pródigos e que não tem dinheiro ou contas bancárias em nome de amigos. Aqui, foi excessivamente explícito e crítico no juízo público que formulou, ainda que por contraste com a exibição da sua própria probidade! Fez, com palavras, e sem legenda, o retrato de uma pessoa concreta que, no caso, está sob investigação à sua responsabilidade, enquanto Juiz de Instrução. E referiu, ainda por cima, que os cortes salariais à classe começaram precisamente no tempo dessa mesma pessoa, agora acusada! Imagino que não seja “vendetta”, até porque desconheço razões para tal. Mas alguém a pode interpretar desse modo! E fica claro que a imparcialidade a que está imperativamente vinculado pode ter ficado seriamente comprometida. E de forma ainda mais grave se tomarmos em consideração a recente Directiva/UE 2016/343, de 9.3.2016, do PE e do Conselho, que recomenda, no número 4. 1., aos Estados Membros que tomem “medidas necessárias para assegurar que, enquanto a culpa do suspeito ou do arguido não for provada nos termos da lei, declarações públicas de autoridades públicas ou decisões judiciais (…) não apresentem o suspeito ou o arguido como culpado”, e sendo certo que no Preâmbulo (Consid. 17) fica claro que “pela expressão ‘declarações públicas emitidas pelas autoridades públicas’ deverá entender-se quaisquer declarações referentes a um ilícito penal, provenientes de uma autoridade interveniente no processo penal (…) como, por exemplo, uma autoridade judicial”! Precisamente: uma autoridade judicial. Que é, neste caso, o Juiz Carlos Alexandre. Este deslize (intencional ou não) poderá, então, vir a custar-lhe a titularidade do processo se “os órgãos competentes”, que irão ser accionados por José Sócrates (ver o seu artigo no DN, 10.09.16, p. 3), concluírem que o dever de imparcialidade do Juiz ficou gravemente afectado com as suas declarações acerca de contas próprias em nome de outros (precisamente aquilo de que acusa José Sócrates). Porque, no meu modesto entendimento, as alusões ao ex-Primeiro-Ministro – a foto, sem legenda, mas desenhada com palavras, está lá de forma evidente – formulam uma imputação que está por provar e sabem a condenação sem julgamento!
O homem sem medo
Disse também que não é homem de quem se deva ter medo, porque cultiva a lei moral de Kant, ou seja: “age de uma forma tal que queiras que os outros ajam em relação a ti da mesma maneira”. O que é, também este, um deslize, desta vez filosófico: a lei moral de Kant (veja-se o Corolário do §7, Cap. I, Livro I da “Crítica da Razão Prática”, de 1788), ou seja, o “imperativo categórico” (“a lei fundamental da razão pura prática”), diz, sim, na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” (1785): “Age só segundo aquela máxima que tu podes querer que, ao mesmo tempo, se torne numa lei universal” (“handle nur nach derjenigen Maxime, durch die du zugleich wollen kannst, dass sie ein allgemeines Gesetz werde”). O que não é a mesma coisa. Neste, a acção vale por si e por isso pode ser elevada a norma universal. Ou seja, o imperativo categórico não resulta de um mero desejo de reciprocidade na acção moral, do tipo “não faças aos outros o que não queres que façam a ti”! E não resulta porque o móbil aqui é o interesse. Que é diferente da universalidade e da racionalidade da lei moral! Mas adiante!
O homem comum
Chegados aqui, o que eu julgo ser necessário evidenciar é que este discurso do “homem comum”, normal, banal, “saloio”, tem como pano de fundo uma outra narrativa genericamente silenciada ao longo da entrevista: a do poder. Mas que irrompeu, com força impressiva, como discurso explícito e apodítico quando se falou do medo: dever-se-ia ter medo dele se virasse Kant do avesso e agisse movido por interesse e por maldade. Aqui, sim. Quando pôs esta hipótese acabou por reconhecer com grande exuberância o seu imenso poder! E ele sabia que quem o via e ouvia conhecia bem esse poder (designadamente, o de determinar a prisão preventiva de alguém que seja declarado suspeito, seja ele quem for). Poder que não é, de facto, o de um homem comum, mas o de um titular de soberania, de um “Meritíssimo Juiz” do TCIC que tem nas suas mãos todos os processos importantes do País! Ora, procurando dar de si a imagem de um homem comum, mesmo sabendo que a audiência o não considerava de facto como tal, ele teve como objectivo, deste modo, reforçar a legitimidade funcional – de que já dispõe – através de um processo de identificação simbólica com esse cidadão comum, a cidadania, dizendo mais ou menos isto: “sou um de vós e faço o meu trabalho de forma honrada e séria em vosso nome!”.
Onde está a falácia?
Este entrevista foi, pois, uma operação de marketing que visou reforçar “politicamente” a sua legitimidade funcional. Por que razão agora e com que objectivo?
Onde está, entretanto, a falácia? Em fazer passar por banal, comum e normal aquilo que o não é: esse poder imenso de que dispõe, resida ele no poder performativo da sua palavra ou no conhecimento analítico dos dossiers vitais dos vários poderes presentes na nossa sociedade.
Mas nada de novo. Há muito que o poder judicial tem uma férrea aliança com o poder mediático. E este foi mais um passo nessa mesma direcção. Mas este caminho tem um problema: a legitimidade do poder judicial é de natureza funcional e, por isso, não se deve pretender alterá-la, mudando-lhe a natureza, porque assim corre-se o risco de desvirtuar gravemente a função e de corromper os princípios e critérios a que ela está imperativamente vinculada. Esta entrada na cena mediática do famoso Juiz vem, pois, dar maior visibilidade àquilo que já se sabia estar a acontecer, ou seja, uma aliança táctica e espúria entre media e justiça ao serviço da legitimação dos próprios poderes. E isto é bom para a justiça?
No meu entendimento, não! Sobretudo quando o Juiz que julga um ex-Primeiro-Ministro exibe publicamente estados de alma, declarando-o culpado antes de o julgar e fazendo-o em prime time, numa televisão generalista de sinal aberto! Dirá: não pus lá o nome! Direi: mas desenhou-lhe, com exactidão, o rosto com palavras, sem pôr lá a legenda!