China e Rússia têm demonstrado enorme atenção com o cenário de fracasso americano. Washington perde enorme influência em todo o Oriente Médio, gerando apreensão em Israel e outros estados moderados. O Estado Islâmico ganha novo fôlego. O xadrez se move intensamente depois de muito tempo.
por Tony Walker, em The Conversation | Tradução de Cezar Xavier
No século 19, a frase “O Grande Jogo” foi usada para descrever a competição por poder e influência no Afeganistão e nos territórios vizinhos da Ásia Central e do Sul, entre os impérios britânico e russo.
Nenhum dos lados prevaleceu no que ficou conhecido como o “cemitério dos impérios”.
Dois séculos depois, uma superpotência americana foi lembrada de uma realidade semelhante.
O desastre do Afeganistão, no qual um exército afegão treinado e equipado com 300 mil homens desmoronou em poucas horas, serve como um lembrete dos limites do poder americano no Oriente Médio em geral.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, pode estar sofrendo as mais duras críticas por uma retirada desastrosamente executada. Mas há muita culpa para todos, remontando à decisão malfadada original de “construir uma nação” em um país que resistiu à interferência externa por milhares de anos.
Após a queda de Cabul e a retirada apressada dos Estados Unidos de um país no qual havia esbanjado US$ 1 trilhão, a questão permanece: o que vem a seguir para o Oriente Médio?
Esta é uma questão cujo arco se estende do Marrocos no oeste ao Paquistão no leste, da Turquia no norte até o Golfo e através do Chifre da África.
Cada canto do Oriente Médio e do Norte da África será afetado de alguma forma pelo fracasso da autoridade americana no Afeganistão, a guerra mais longa de sua história.
A avaliação dos EUA também é compartilhada por seus aliados da OTAN e países como a Austrália. A participação imprudente da Austrália em um compromisso aberto com o Afeganistão deve atrair censura.
Um novo Saigon?
Inevitavelmente, comparações estão sendo feitas entre a retirada em pânico dos Estados Unidos de Cabul e cenas semelhantes em Saigon, 46 anos atrás.
Em alguns aspectos, a situação afegã é mais preocupante porque grande parte do Oriente Médio corre o risco de cair no caos.
A derrota do exército sul-vietnamita em 1975 pode ter influenciado os desenvolvimentos nos estados vizinhos da Indochina, mas as consequências foram amplamente contidas.
O Afeganistão é diferente no sentido de que, embora a credibilidade e a autoconfiança dos Estados Unidos tenham sido abaladas no Vietnã, eles continuaram sendo a força militar dominante no oeste do Pacífico, antes da ascensão da China.
No Oriente Médio, uma Washington diminuída – na qual a confiança em sua capacidade de cumprir seus compromissos foi abalada, senão destruída – descobrirá que sua autoridade será muito questionada.
Isso ocorre em um momento em que China e Rússia estão testando a determinação americana globalmente. Na própria região, Turquia e Irã já buscam preencher um vazio exposto por um fracasso americano.
Pequim e Moscou, por suas próprias razões, têm interesse no futuro do Afeganistão. Para a China, isso vai além de apenas compartilhar uma fronteira, enquanto para a Rússia são as preocupações históricas com o extremismo afegão infectando suas próprias populações muçulmanas e as dos Estados-nação em sua periferia.
Recentemente, a China tem dialogado com líderes do Taleban. Seu ministro das Relações Exteriores, Wang Yi, manteve uma reunião bem divulgada com o chefe político do Taleban afegão, mulá Abdul Ghani Baradar, no mês passado.
Depois, há o Paquistão, que tem apoiado o Taleban tanto de maneira velada quanto aberta ao longo dos anos. Islamabad verá no extremo desconforto americano oportunidades para si mesma de assumir um papel regional mais significativo.
Sem esquecer os laços estreitos do Paquistão com a China e sua relação turbulenta com os Estados Unidos.
No próprio Afeganistão, o Taleban pode cumprir sua promessa de que mudou e que buscará estabelecer um governo de consenso em um país dividido por sangrentas divisões étnicas e tribais.
Dadas as primeiras indicações de represálias brutais do Taleban contra seus inimigos e a reação de pânico da população afegã em estado de choque, seria preciso muita fé para acreditar que muita coisa mudou.
Que implicações isso terá no Oriente Médio?
As franquias da Al-Qaeda e do Estado Islâmico poderão se restabelecer em um Afeganistão controlado pelo Taleban? O Taleban ressurgirá como um patrocinador estatal do terrorismo? Continuará a permitir que o Afeganistão seja usado como uma gigantesca horta comercial no comércio de ópio?
Em outras palavras, o Taleban mudará seus hábitos e se comportará de maneira que não constitua uma ameaça para seus vizinhos e para a região em geral?
Do ponto de vista dos EUA, sua saída do Afeganistão deixa suas tentativas de dar vida ao acordo nuclear com o Irã como sua principal peça de negócios inacabados no Oriente Médio – se colocarmos de lado a disputa aparentemente intratável entre Israel e Palestina.
As tentativas de reviver o Plano de Ação Conjunto Abrangente (JCPOA) formaram a pedra angular dos esforços do governo Biden para se envolver de forma mais construtiva no Oriente Médio.
O progresso tem vacilado. A eleição de um novo presidente iraniano linha-dura complica ainda mais os esforços para chegar a um acordo. O fracasso em ressuscitar o JCPOA, abandonado pelo presidente Donald Trump, adicionará uma nova camada de incerteza – e risco – aos cálculos do Oriente Médio.
Não haverá nenhuma parte mais interessada nos desenvolvimentos no vizinho Afeganistão do que a liderança em Teerã. O relacionamento do Irã com o Taleban tem sido tenso às vezes, cooperativo em outras, devido à ansiedade em Teerã sobre os maus-tratos à população xiita do Afeganistão.
O Irã xiita e o talibã fundamentalista sunita não são parceiros naturais.
Mais adiante, os últimos desenvolvimentos no Afeganistão atrairão a atenção dos Estados do Golfo. O Catar forneceu um refúgio diplomático para o Taleban durante as negociações de paz com o governo Ghani vencido. Esta iniciativa de paz, sob os auspícios dos EUA, agora é revelado como uma barreira para as ambições do Taleban de retornar ao poder por seus próprios méritos.
É confuso como qualquer observador razoável poderia ter acreditado de outra forma.
A Arábia Saudita ficará perturbada com os acontecimentos dos últimos dias porque não é do interesse de Riad que a autoridade americana na região seja minada. Mas os sauditas têm seus próprios laços de longa data com o Taleban.
Na política externa da Arábia Saudita, o Afeganistão não é um jogo de soma zero.
De maneira mais geral, o impacto sobre a posição dos EUA na região será preocupante para seus aliados árabes moderados. Isso inclui o Egito e a Jordânia. Para ambos, com suas próprias versões do Taleban espreitando nas sombras, os acontecimentos no Afeganistão não são boas notícias.
O sucesso do Taleban no Afeganistão também terá implicações para o canto mais explosivo do Oriente Médio. Tanto no Iraque quanto em partes da Síria onde os EUA mantêm uma presença militar, a saída americana será inquietante.
No Líbano, que se tornou para todos os efeitos um estado fracassado, a derrocada do Afeganistão aumentará a escuridão.
Israel estará calculando as implicações do revés sofrido por seu principal aliado. O aumento da instabilidade no Oriente Médio não parece ser uma vantagem para Israel.
Nesta próxima fase, os EUA sem dúvida recuará de tudo, exceto de seus compromissos mais urgentes com o Oriente Médio. Este será um momento para refletir sobre as lições que podem ser aprendidas com a dolorosa experiência do Afeganistão.
Uma lição que deveria ser primordial no que diz respeito aos Estados Unidos e seus aliados: lutar em guerras de “estados falidos” é uma proposta perdida.
por Tony Walker, Par do vice-reitor na La Trobe University (Austrália) | Texto original em português do Brasil, com tradução de Cezar Xavier
Exclusivo Editorial PV / Tornado