Nas últimas semanas assistimos a nova ofensiva ideológica contra o projecto governamental da Lei de Bases da Saúde por parte de diversos intervenientes e sob diversas formas: artigos, abaixo-assinados, conferências ou meras declarações pessoais.
Nesta campanha antigovernamental tem valido de tudo um pouco, verificando-se, até, o recurso às mentiras mais descaradas, tentando criar a ideia de que o sector privado e o sector social seriam objecto de uma clara hostilidade.
E estas afirmações têm sido feitas quando no nosso país os dinheiros públicos na Saúde têm permitido a viabilização de importantes negócios privados.
Nas diversas tomadas de posição importa destacar os seguintes aspectos:
- A gestão do SNS deveria ser autonomizada em relação ao Ministério da Saúde.
- Ser efectuada a separação das funções de prestador e pagador dos cuidados de saúde.
- O SNS ser transformado em instituto ou empresa pública.
- Que esse percurso de autonomização foi efectuado no Reino Unido com resultados muito positivos.
- Que é atribuído um papel secundário ao sector privado e ao sector social.
- Contestação ao carácter supletivo e temporário da gestão privada na saúde expresso no projecto governamental.
- Criação de um grupo de trabalho para apresentar um “ projecto neutro” ao Parlamento que crie um novo SNS “de raíz”.
Como algumas dessas posições tentam “ressuscitar” o modelo neoliberal de M. Thatcher, escamoteando os resultados desastrosos a que conduziu o sector da saúde na Grã-Bretanha com a quase completa destruição do seu NHS ( National Health Service), importa lembrar que esse modelo foi condensado num documento intitulado “White Paper”.
Torna-se, então, indispensável fazer uma explicação sintética dos pilares desse modelo.
Em 1989, o governo conservador de Margaret Thatcher apresentou um documento orientador da reforma do sistema de saúde com o título “Trabalhando para os doentes”.
Este documento tornou-se mais conhecido pela designação de “White Paper”.
Nas suas considerações gerais, era afirmado que ele visava o “fortalecimento do NHS”, “colocar o doente acima de qualquer interesse”, que “o governo mantém e não mudará os princípios sobre os quais o NHS foi erigido”, o “NHS continuará aberto a todos e financiado pelas contribuições fiscais” e que “cada vez mais gente se dá conta de que nova injecção de mais dinheiro não é, por si só, uma resposta”.
Como objectivos gerais foram colocados os seguintes: “oferecer aos doentes, independentemente do seu lugar de residência, melhores cuidados de saúde e maior possibilidade de escolha dos serviços disponíveis”; “gerar maior satisfação e incentivos para os profissionais do NHS que demonstrem responder satisfatoriamente às necessidades e preferências dos doentes a seu cargo”.
Relativamente às propostas-chave foram definidas as seguintes:
- Maior delegação de responsabilidade a nível local.
- Hospitais autónomos.Criação de um novo estatuto de autonomia com a designação de “hospitals trusts”, com a premissa de maior liberdade para tomarem decisões sobre aquilo que os afecta, tais como a determinação das remunerações do seu pessoal e a capacidade para recorrerem ao crédito externo, dentro de certos limites.
- Novas formas de financiamento. Para permitir que os hospitais que prestassem melhores serviços aos seus utentes tivessem acesso aos investimentos financeiros de que necessitavam, o dinheiro para tratarem os doentes poderia “cruzar” as então fronteiras administrativas entre os distritos.
- Nesse sentido, todos os hospitais do NHS seriam livres de oferecer os seus serviços tanto ao sector público como ao privado. Deste modo, o dinheiro acederia com maior fluidez onde fosse prestada a actividade assistencial e onde ela se realizasse melhor (estas disposições definem o principio do “dinheiro que segue o doente”).
- Colocação de especialistas adjuntos às consultas dos médicos clínicos gerais / médicos de família.
- Orçamentos para os “group practices”. Estes orçamentos foram justificados como uma forma de ajudar os médicos clínicos gerais a melhorarem a prestação de serviços aos seus utentes. Os médicos clínicos gerais poderiam solicitar os seus orçamentos ao NHS, que seriam por si administrados para comprarem directamente aos hospitais que entendessem um pacote definido de serviços hospitalares para os seus utentes. Os orçamentos das listas de utentes dos clínicos gerais passariam a abranger:
- Serviços ambulatórios.
- Um conjunto definido de serviços de hospitalização convencional.
- Exames diagnósticos.
- O custo da prescrição de medicamentos.
- Verbas para melhorar as instalações.
- Os custos do pessoal empregue, sendo 70% reembolsados pelo governo.
- Reforma dos órgãos de gestão. Os órgãos de gestão seriam reduzidos no seu número, sujeitos a directrizes empresariais e constituídos por membros executivos e não executivos.
- Melhorar as auditorias. Para garantir que todos os responsáveis pela prestação dos cuidados de saúde fizessem o melhor uso possível dos recursos do NHS, oferecendo serviços de qualidade e com rendimento, seriam objecto de rigorosas auditorias.
No desenvolvimento dos conceitos e das propostas apresentadas, encontramos no documento algumas afirmações que merecem uma referência particular:
- A afirmação altissonante de “o utente em primeiro lugar”.
- “Pressionar a diminuição das despesas farmacêuticas através de um novo desenho orçamental, no qual as Autoridades Regionais de Saúde fixavam os orçamentos farmacêuticos para os grupos de clínicos gerais e as listas destes médicos, recebendo orçamentos indicativos de forma a guiar o custo das suas prescrições” (são os chamados orçamentos clínicos).
- “Extensão progressiva de uma maior flexibilidade nas remunerações em todo o NHS, de forma que os gestores possam premiar o desempenho individual eficiente”.
- “As regiões e os distritos serão financiados pelas estatísticas da população ponderada por idade e nível de saúde.”
- “O NHS e o sector privado passarão a apoiar-se mutuamente e a oferecerem serviços reciprocamente, em benefício dos utentes.”
- “A recompensa dos clínicos cujos serviços atraiam maior número de utentes, de forma a aumentar a proporção da sua remuneração, será calculada de acordo com a extensão das suas listas e passará de 46% a 60%, o mais rapidamente possível”.
- “O resultado será um melhor tratamento para o público, tanto como utentes como contribuintes. O governo, deste modo, reforçará os aspectos positivos do NHS e poderá compensar as suas falhas, assegurando que ele se fortaleça, se modernize e se comprometa, mais que nunca, em trabalhar para os utentes”.
O governo conservador, que já vinha preparando estas medidas desde 1983, desencadeou um imediato e empenhado esforço na rápida concretização do conteúdo deste documento, recorrendo a uma ampla campanha de argumentos.
Alguns dos argumentos utilizados foram:
- A necessidade de eliminar as instituições monolíticas estatais.
- A competição proporcionará incentivos para as melhorias na eficiência.
- O empresariado médico é bom para os doentes.
- Estas medidas irão melhorar o atendimento aos mais pobres e desfavorecidos.
- Garantir a melhoria da capacidade do sistema de saúde para responder às necessidades dos doentes.
O conceito nuclear deste “White Paper” foi a separação das funções de prestador e financiador, nomeadamente através da separação dos hospitais que prestam os serviços e das autoridades de saúde e os clínicos gerais que lhes compram esses serviços.
Em torno desta medida, foi também argumentado que se os papéis estivessem separados as agências financiadoras teriam a possibilidade de efectuar um exame mais cuidadoso das prioridades e necessidades dos doentes e das populações, e uma avaliação mais cuidadosa e independente. Libertas das pressões imediatas de gerir hospitais e das pressões políticas de interesses de grupos profissionais de saúde, poderiam ser efectuadas avaliações mais críticas e tomadas decisões mais racionais.
Deste modo, e ainda segundo os argumentos oficiais, as agências fornecedoras poderiam ficar aptas para competirem umas com as outras pelos negócios das agências financiadoras/compradoras.
No essencial, a separação entre compra e prestação era parte do modelo de reforma assente no “mercado interno” necessário para introduzir a atribuição de recursos baseada na competição entre prestadores e formalizado através de contratos, em que essa atribuição estaria ligada, cada vez mais, ao volume de actividade e aos custos e menos aos gastos históricos.
Outra das componentes centrais desta reforma foi o estabelecimento do modelo designado como “General Practitioners Fund Holdings Schemes” (GPFHS), no qual grupos de médicos clínicos gerais, também designados médicos generalistas, constituídos por 6 ou 7 elementos e com listas de, pelo menos, 11.000 pessoas, tinham a responsabilidade de gerir um orçamento atribuído pelo NHS e destinado a um vasto conjunto de serviços que incluiam as consultas de clínica geral, as consultas hospitalares, os internamentos, intervenções cirúrgicas, exames complementares de diagnóstico, todos os medicamentos receitados, as despesas administrativas decorrentes da gestão do próprio grupo de GPFHS, como contratação de pessoal e aluguer ou aquisição das instalações utilizadas para a respectiva actividade, e ainda as suas próprias remunerações como médicos.
Estes grupos de médicos eram, nas suas características de enquadramento legal e de funcionamento, cooperativas cuja fonte de inspiração foram, nos aspectos essenciais, os “PPGP” americanos.
O ciclo anual de compras de serviços foi definido da seguinte forma:
- No mês de Agosto, a direcção executiva do NHS publicava um documento de prioridades para situar as coordenadas da negociação.
- Em Setembro, os compradores (Autoridades de Saúde e GPFHS) tornavam públicas as suas propostas de compra de serviços. Surpreendentemente, não existia, até aqui, qualquer informação sobre o dinheiro disponível para o ano fiscal seguinte (na Grã-Bretanha inicia-se a 1 de Abril de cada ano).
- Em Novembro, eram comunicadas aos compradores as ofertas de serviços em termos de volume e preços.
- A negociação detalhada desenvolvia-se em Janeiro e Fevereiro, e deveria estar concluída em Março.
Todos os agentes estavam envolvidos em múltiplos e simultâneos processos de negociações, transacções e contratos. Estes processos implicavam um pesado envolvimento de recursos humanos e técnicos, chegando cada contrato a possuir 100 páginas, sem incluir os diversos anexos.
Um hospital médio na zona de Bradford, dos seus 150 trabalhadores administrativos, dedicava 25 técnicos a tempo completo, entre Setembro e Março, para negociar os vários contratos.
A partir de 1999, começaram a ser experimentados contratos com a duração de 3 anos.
Depois desta síntese, ficamos com uma melhor ideia das reais consequências desses modelos privatizadores.
Vêm sempre “embrulhados” em promessas de muitas soluções e de menor burocracia para evitar desde logo uma ampla contestação da opinião pública, mas depois os resultados são ainda piores do que aquilo que já existia.
Com as referências directas ao argumentário utilizado na Grã-Bretanha para levar à privatização e desmantelamento do NHS, ficamos com uma perspectiva mais concreta daquilo que alguns pretendem fazer ao nosso SNS.
Nesse sentido, é sempre útil recordar as opiniões expressas pelo Dr António Arnaut, como, por exemplo, na entrevista que deu ao Jornal “Médico de Família” no mês de Junho de 2003, quando estava em funções um governo de coligação PSD/PP chefiado por Durão Barroso.
Dessa entrevista, destaco as seguintes respostas às perguntas do jornalista:
Está-se a tentar fazer uma inversão, transferindo-se o máximo de competências para o sector privado, deixando o público reduzido a um papel insignificante.”.
…Este Ministro é um empresário dos Mellos emprestado à Saúde. Pode ser um bom empresário, um bom gestor, mas não tem sensibilidade para os problemas da saúde, que têm que ver com direitos humanos. Sobretudo no que toca às classes mais desfavorecidas”.
À pergunta se o actual ministro está a tentar destruir o S.N.S., respondeu:
É verdade. O Luís Filipe Pereira, que eu não conheço pessoalmente mas que me merece consideração, é mais sensível à Organização Mundial do Comércio, que considera tudo uma mercadoria, do que aos princípios correctos da Organização Mundial de Saúde. O que este ministro quer fazer é empresarializar os centros de saúde e os hospitais e construir novos hospitais em parceria com a iniciativa privada”.
Não concorda com essa intenção?:
Claro que não. O Governo, através da empresarialização e da construção de novas unidades de saúde em parceria com os privados, quer alienar prestações que o Estado tem o dever de assegurar”.
Eticamente, como classifica o avanço no sentido da privatização?:
Estamos perante um neoliberalismo selvagem. A Saúde é um sector especial porque cobre direitos fundamentais. Portanto, o Estado, enquanto existirem esta Constituição e os pactos internacionais sobre direitos fundamentais, não pode privatizar…”.
Considera que as parcerias público-privados são um tiro no escuro?:
Não, porque o Governo apontou para um alvo. E esse é fazer uma privatização indirecta. Eles vão criar sociedades anónimas de capitais públicos. Essas sociedades anónimas gerem-se pela lei das sociedades comerciais. E é da essência das sociedades comerciais que um accionista pode vender as suas acções…”.
Quando alguém defende a separação das funções de prestador e de pagador é da destruição neoliberal do direito à saúde que se trata.
Quando alguém vem falar na transformação do SNS em instituto ou empresa pública, basta olharmos para a situação em que se encontram os nossos hospitais com os modelos SA e, depois, EPE para ficarmos com uma ideia do que aconteceria ao nosso SNS.
Chegar ao cumulo de afirmar que é preciso criar um novo SNS a partir de um “projecto neutro” é já levar longe o descaramento político.
O que é curioso, é que mesmo os inimigos do SNS tentam disfarçar os seus objectivos liquidacionistas com supostas preocupações sociais.
Sérgio Godinho tem uma conhecida canção cujo refrão diz:
Cuidado Casimiro
Cuidado com as imitações
Cuidado minha gente
Cuidado justamente com as imitações.
Tenhamos cuidado com as imitações e com os imitadores.