O que diz o Editorial? Diz que este não é “um ano de eleições normal” e que, por isso, toma posição para “persuadir aqueles de vós que estão a hesitar em votar na Senhora Clinton”.
Hillary for President
Em condições normais, o jornal cotejaria as posições de ambos os candidatos, mas, nas condições actuais, isso seria um exercício “vazio”. E faz uma longa exposição sobre as suas qualidades pessoais, competências, posições políticas, desempenho nos cargos que ocupou, como Senadora e como Secretária de Estado de Barack Obama, mas também como Primeira Dama. Uma clara defesa da sua candidatura: “challenges this country faces, and Mrs. Clinton’s capacity to rise to them”. Considera, além do mais, o candidato Donald Trump como o pior candidato proposto por um partido na moderna história americana.
Sejamos claros. Que a Fox News tenha uma posição radical em defesa de um candidato republicano, não admira. Este canal é conhecido por fazer um jornalismo “advocacy”, militante, ao serviço permanente do partido republicano. E que o seu antigo patrão, Roger Ailes, era, e é, um famoso e agressivo Spin Doctor dos republicanos, conselheiro de sucesso de vários Presidentes, também se sabe. Mas que o NyTimes o faça desta forma perentória e deste modo, levanta uma velha questão de fundo, ou seja, a questão da função de cidadania dos media.
E porquê? Porque no seu código ético encontramos palavras como “fairness”, “integrity”, “truth”, “accuracy”, “impartiality”, ou seja, as mesmas que encontramos em outros códigos éticos e que procuram preservar precisamente essa função, através da imparcialidade, da objectividade e da neutralidade no exercício da informação. Diz, com efeito o NyTimes: “The goal of The New York Times is to cover the news as impartially as possible”.
Os códigos éticos do jornalismo
O que são os códigos éticos e para que servem? São conjuntos de princípios que integram um quadro normativo de referência que deve guiar, tanto quanto possível, os meios de comunicação no processo informativo. Estes princípios enquadram a função de cidadania dos media porque garantem o fim último da informação: dotar os cidadãos de informação objectiva acerca da realidade para que eles possam fazer racionalmente as suas opções, seja na política, na cultura, na economia ou na vida quotidiana. Na verdade, os meios de informação existem para servir a cidadania, fornecendo-lhe boa e relevante informação, de forma neutra, imparcial, independente e objectiva. Destes códigos éticos já se fala desde 1690, data do famoso e primeiro código Harris. E, portanto, transgredi-los corresponde a desviar-se da sua função essencial.
Dir-se-á, então, que o jornalismo “advocacy”, ou militante, é ilegítimo? No essencial, sim, porque não cumpre a sua função originária: dar toda a informação ao cidadão para que ele, sim, possa fazer, autónoma e responsavelmente, as suas opções, com as suas próprias razões ou fundamentos. Uma prática diferente corresponde simplesmente a engano e a manipulação – a spinning: informação com efeito.
Uma questão de legítima defesa
E é aqui que bate o ponto. Por que razão o NyTimes toma posição, contrariando os seus próprios princípios e, em geral, os princípios dos códigos éticos?
A minha resposta é a seguinte: em condições normais, como é dito no Editorial, não o faria como fez, apesar de, como sabemos, ter um longo historial de apoio a Presidentes: de Lincoln a Kennedy ou a Obama. E agora fá-lo de um modo perentório e quase imperativo porque, no seu entendimento, se trata de uma situação não normal, vistos, por um lado, os enormes problemas com que os Estados Unidos têm de se confrontar (problemas no Médio Oriente, relações da Rússia com a Europa oriental, guerra, terrorismo, pressões da globalização, graves problemas internos) e, por outro, a excepcionalidade negativa deste candidato republicano. Sabemos que esta é uma prática comum, e não só nos Estados Unidos. Mas isto não invalida que a prática contrarie os princípios dos próprios códigos éticos livremente adoptados. Não esqueçamos que o primeiro código ético surge precisamente nos Estados Unidos (conhecido como código Harris) e que aquele que é considerado como o primeiro código formal é de 1910, no Kansas, também nos Estados Unidos.
O NyTimes sabe muito bem que está a infringir regras muito importantes do seu próprio código ético e do jornalismo em geral, em particular as do próprio modelo liberal que tende, afinal, para a progressiva afirmação da neutralidade política, para usar o conceito de Hallin e Mancini, em “Comparing Media Systems”, de 2004 (veja-se o capítulo 7). E di-lo de forma clara, argumentada e frontal. Mas fá-lo nestes termos, julgo eu, numa lógica de legítima defesa, pelas razões apontadas e pelo perigo que Trump representa para os Estados Unidos e para a política internacional. Não ouso dizer, como no Domingo fez o conservador liberal Andrew Roberts, nas páginas do DN (25.09, p. 29), que dos líderes históricos o mais próximo “de Trump é Mussolini”. Mas parece ser consensual que ele tem vindo a exibir posições que acrescentariam conflito e tensão aos conflitos e tensões já existentes. E, por isso, a posição de legítima defesa assumida pelo NyTimes até é compreensível e mesmo partilhável, sobretudo quando as sondagens estão a dar resultados que põem os dois candidatos em pé de igualdade e quando as campanhas sujas voltam a entrar em cena de forma violenta. Veremos o que acontece no debate desta noite de 27 de Setembro.
Bem sei que o modelo de jornalismo e de informação que respeita a sua função de cidadania está constantemente a ser atropelado, lá como cá, e sujeito a um spinning cada vez mais intenso e sofisticado, dando lugar a uma política que alguns já designam por política pós-factual! Mas também é verdade que a rede está irromper com tal força no espaço público que pode vir a servir de forte antídoto a este desvio, obrigando a uma efectiva correcção de rota no percurso informativo em suporte tradicional. O que, todavia, no meu entendimento, não nos deverá impedir de continuar a desenvolver, na frente mediática, um forte combate pela aplicação séria desses mesmo códigos éticos de que os próprios meios de comunicação livremente se dotaram. Para que a excepção não se venha a tornar regra e os media transformem a sua função de cidadania em puro exercício de poder sobre a consciência dos cidadãos!