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João de Sousa

Domingo, Novembro 3, 2024

O tempo, esse grande mistério

É o tempo que tudo leva consigo. A força, o fulgor da vida, a juventude. Também é ele que acaba com as alegrias, maiores, ou menores, que acaba com os grandes e insuspeitáveis amores, que altera sentimentos que pareciam de pedra e cal, e que, com o passar do tempo, tudo o que parecia seguro e garantido se vai.

Do tempo, nada nem ninguém escapa. É como se contra ele nada pudéssemos.

Somos nós e todas as coisas que passamos pelo tempo. Passamos por ele porque ele está omnipresente nas nossas vidas, na contagem das horas, dos minutos, dos segundos. Ou dos dias, das semanas e dos anos.

Quando mais jovens, sonhávamos ser felizes, ter saúde eterna, ter dinheiro, ter filhos, ter um verdadeiro amor, sempiterno e duradouro. E projetávamos tudo isso no tempo, num tempo que seria nosso, só nosso, e, inocentes, acreditávamos que ele tudo nos daria. Chegado esse tempo por nós ambicionado, vimos que ele não nos deu assim tanto quanto ambicionávamos; e até coisas que nos pareciam naturais vivê-las, nos foi roubado com o passar do tempo.

Quando estamos muito felizes, ele voa, e quando se está à espera de alguma coisa que queremos muito, ele parece ter parado. É como se ele, caprichoso, nos comandasse, e pertinaz, de uma forma ou de outra estivesse sempre contra nós. As pessoas que já viveram muito, sobretudo as mais afortunadas, são unânimes em afirmar que a vida que viveram lhes pareceram breves instantes. E quando se deram conta, já viveram tudo o que era para viver. Esperando apenas pelo fim. Quando o tempo decidir que é tempo.

Mas o tempo muitas vezes pode ser o nosso maior aliado e o nosso maior amigo. Quando se perde um grande amor, por exemplo; ou alguém muito querido que a morte arrebatou e nos deixou vazios e em profunda dor. Com o passar do tempo, no entanto, a vida vai ficando mais amena e mais branda. Aos poucos, já temos vontade de sair, de passear, de estar com os amigos, de conversar. E um dia, depois das tempestades, vamos saber que foi o tempo precisamente que nos salvou.

Um conto de Voltaire, “Os dois consolados”, demonstra a importância essencial desse grande mistério chamado tempo.

O grande filósofo Citófilo dizia certa vez a uma mulher desolada e que tinha razões de sobra para isso:

– A rainha de Inglaterra, filha do grande Henrique IV, foi tão infeliz quanto a senhora: expulsaram-na dos seus domínios; esteve prestes a naufragar numa tempestade; assistiu à morte do seu real esposo no cadafalso.

– Lamento-a, disse a dama: e pôs-se a chorar seus próprios infortúnios.

– Mas lembre-se de Maria Stuart – insistiu Citófilo. – Ela amava muito honestamente a um nobre músico que tinha uma bela voz de baixo. O marido matou-lhe o músico à sua própria vista; e depois a sua boa amiga e parente a rainha Elizabeth que se dizia virgem, mandou cortar-lhe o pescoço num cadafalso forrado de negro, depois de a ter conservado prisioneira durante dezoito anos.

– Cruel destino – respondeu a dama; e tornou a abismar-se na sua melancolia.

– E com certeza já ouviu falar – continuou o consolador – na bela Joana de Nápoles, aquela que foi presa e estrangulada?

– Lembro-me confusamente – respondeu a aflita senhora.

– Pois bem, devo então contar-lhe o que aconteceu a uma outra grande princesa, a quem ensinei filosofia. Tinha ela um namorado, como acontece a todas as belas e grandes princesas. Uma vez o pai entrou-lhe no quarto e ali surpreendeu o amante, que tinha as faces em brasa e cujo olhar fulgurava como um diamante; a dama estava também muito animada de cores. A cara do jovem desagradou de tal maneira ao pai, que este lhe aplicou o mais formidável bofetão de que há memória na sua província. O amante pegou num par de tenazes e rachou a cabeça do sogro, que só agora se está curando e ainda tem as cicatrizes do ferimento. A amante, desesperada, saltou pela janela e destroncou o pé; de maneira que hoje coxeia visivelmente, embora tenha em compensação um corpo muito bonito. O amante foi condenado à morte por haver quebrado a cabeça a tão alto príncipe. Imagine o estado em que não estava a princesa quando levavam o amante para a forca. Visitei-a durante muito tempo, enquanto ela se achava em prisão: só me falava das suas desgraças.

– Por que não quer então que pense nas minhas? – retrucou a dama.

– É porque não deve – replicou o filósofo – Pois havendo tantas e tão grandes damas com tamanhas desgraças, não lhe fica bem desesperar-se. Pense em Hécuba, em Niobe.

– Ah! – exclamou a dama – se eu tivesse vivido no tempo dessas últimas, ou no de tantas belas princesas, e para as consolar, lhes contasse o senhor as minhas desgraças, acha que elas lhe dariam ouvidos?

 

No dia seguinte o filósofo perdeu o seu único filho e esteve a ponto de morrer de dor. A dama organizou então uma lista de todos os reis que haviam perdido os filhos e levou-a ao filósofo. Este a leu, achou-a bastante exata, e nem por isso chorou menos.

Três meses depois tornaram a encontrar-se e muito se espantaram de se achar mais alegres. E mandaram erigir uma bela estátua ao tempo, com a seguinte inscrição: Àquele que consola.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90


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