Pintora, que comemora este mês seus 90 anos, prepara-se para realizar uma grande mostra retrospectiva de seu trabalho.
Sobre o amigo João Câmara, Tereza Costa Rêgo deixa escapar, entre o sorriso largo, um pouco de sarcasmo: “Não tem sangue nas veias, tem mercúrio. João é um ser mineral!”, diz ela que, há mais de 30 anos, já moradora na rua olindense do Amparo, depois de mais de uma década de exílio na Europa, tinha um gato com o nome do amigo também artista e, como ela, essencial para entendimento do modernismo figurativista pernambucano. “Era um danado o gato. Como João, só fazia o que queria!”, ri, sobre a suposta objetividade de Câmara. É do amigo mineral umas das melhores definições de Tereza: “O tempo não a venceu. Não a vencerá, ela estará bela até o fim”.
Completando 90 anos neste abril, Tereza parece confirmar o vaticínio de Câmara. O tempo tem tido dificuldade em dobrá-la. A despeito de problemas recentes de saúde e da natural diminuição do ritmo de trabalho, mantém o metabolismo criativo.
Tem dias que pinto até não aguentar mais. Não é só um trabalho intelectual, mas também físico. Pinto e vou me deitar com dores no corpo até passar. Preciso pintar. Pintarei até não poder mais.”
Para comemorar as nove décadas de vida, Tereza planeja novos quadros. Mas, sobretudo, realizar uma grande retrospectiva de sua carreira. Uma mostra nacional. “Nunca dei muita importância para isso”, diz ela que há dez anos recusou um convite para assinar uma panorâmica de sua obra na prestigiosa Pinacoteca de São Paulo. “Sempre fui feliz pintando em Pernambuco. Ou melhor, em Olinda, esta cidade é minha pátria”, pontua. Mas pondera: “Agora tenho tido muita vontade de ver um quadro meu num museu importante como o Museu Nacional, em Brasília. Não me pergunte o porquê. Mas tenho”.
No painel de 8 x 2 metros, a artista conta sua versão sobre a Batalha de Tejucupapo, liderada por mulheres.
Com o projeto aprovado pela Lei Rouanet, e ainda em negociação de patrocínio, se prevê uma exposição com circulação em quatro capitais do país, composta por cerca de 40 obras de grandes dimensões, sob curadoria do carioca Marcus Lontra. “O Brasil não tem apenas o direito, mas o dever de conhecer a obra de Tereza Costa Rêgo”, defende ele. Curador e historiador da arte de trajetória marcante, Lontra é um dos responsáveis pela redefinição da arte moderna brasileira desde os anos 1980. Foi dele a curadoria da exposição Onde está você, Geração 80?, cuja relevância já foi comparada à Semana de Arte Moderna de 1922.
Tereza, lembra Lontra, confirma a independência da pintura pernambucana em relação a escolas e modismos nacionais. “Pernambuco nunca se rendeu ao abstracionismo e ao geometrismo que se tornariam regras. A pintura de Tereza confirma o figurativismo que é marca da arte moderna pernambucana”, diz ele. “Não se pode mais acreditar que houve apenas um modernismo brasileiro, centrado apenas no evento da semana paulistana de 1922. Houve e há vários modernismos no país. De várias durações. O de Pernambuco é um dos mais contundentes”, pontua. “E a pintura de Tereza convida, liberta para o prazer, sendo capaz de dar conta de tragédias e dores do mundo”, diz ele, sobre a historicidade épica na narrativa da artista.
Mais que cronista
Tereza é testemunha e protagonista do controverso século XX. Descendente de uma família do patriarcado açucareiro em vias de falência, subverteu sua genética social e transformou, como pôde, parte do mundo que lhe era conhecido. Viveu as ditaduras de Vargas e de 1964; a ditadura de Pinochet; a Revolução dos Cravos; os bastidores da ditadura comunista da pequena Albânia e da corte militarizada de Mao Tse-Tung. “Acho que até para ir na esquina comprar pão, precisamos ter o mínimo de conhecimento da história. Mas ter vivido tudo isso apenas aumenta minha responsabilidade. Como pintora, eu sou pouco mais que uma cronista”, ela diz.
Por enquanto, a mostra em gestão intitula-se A História na arte de Tereza Costa Rêgo e reúne 40 anos de produção, em que se observa o constante interesse da pintora pela História, que a interpreta pela imaginação pictórica.
Há cerca de quatro anos, ao completar 86 anos, a artista pintou um painel de 12 metros de extensão (com dois de altura). Nele, contou sua versão sobre a Batalha de Tejucupapo, em que quatro mulheres teriam capitaneado uma brigada contra o exército invasor holandês neste povoado da cidade de Goiana, a cerca de 60 quilômetros do Recife. Armadas de paus e utensílios de catar marisco, elas teriam subjugado os flamengos. “Se a batalha aconteceu ou não, menos importa. Importa que o mito ficou”, ela diz. “Há anos, sentia vontade de vomitar essa história”.
A jovem Tereza cresceu numa família do tradicional patriarcado açucareiro pernambucano
Foto: Acervo pessoal
O painel reafirma a monumentalidade que marcaria a obra de Tereza a partir da redemocratização do Brasil, desde quando, ao lado de artistas como Luciano Pinheiro, integrou a Brigada Portinari. O movimento serviria não apenas para dar musculatura à candidatura vitoriosa do amigo Miguel Arraes ao Governo do Estado de Pernambuco. Além de ajudar na campanha arraesista de 1986 – quando reassumiu a cadeira de governador da qual foi deposto pelos militares, em 1964 –, o movimento, inspirado no muralismo mexicano, tinha também como ideal popularizar a arte para além do contexto de museus, galerias e colecionadores.
Saíamos para pintar com tinta simples, de parede, grandes painéis pelas ruas. Dali, meus gestos foram se ampliando, até nunca mais encurtarem. Meus quadros passaram a ter tamanhos cada vez maiores”
Raramente um quadro da pintora voltaria a ter menos que dois metros.
A história, contudo, entraria para a vida de Tereza por um motivo particular. Casada com um proeminente representante do meio jurídico pernambucano, seguia cumprindo sua herança social de “esposa”. Sua rotina consistia em decorar as colunas sociais e frequentar os salões do Country Club do Recife. “Minha maior preocupação era escolher a louça e os talheres dos jantares que oferecíamos em casa”.
No casarão das Graças que contava com 12 empregados, a alta sociedade pernambucana tinha um microcosmo permanente. Além de gente decorativa, comiam naquela louça nomes proeminentes das artes e da política nacional. Num daqueles rega-bofes, na sala de casa, Tereza conheceu o líder político Diógenes Arruda. Rival em estatura a Luís Carlos Prestes, torturado por Vargas, Arruda inspirou o personagem principal de um dos volumes de Os subterrâneos da liberdade, a trilogia de Jorge Amado sobre os porões do Estado Novo. Era um verbete histórico vivo. “Mas nada disso me impressionou.” No casamento, Tereza não conhecera o amor. “Eu vinha de uma família patriarcal muito repressora. Tudo era proibido. Casei mais para poder sair de casa e ter minha vida”, diz ela. “Fui uma menina criada para enfeitar o piano da sala”.
Quando Diógenes apareceu na casa da senhora Terezinha Barros Costa Rêgo, mãe de duas filhas, o piano da sala quebrou-se de vez. “Diógenes era um animal de raça. Foi inevitável”.
Pouco procurada pelo marido, com a relação em franco esfriamento, Tereza viu o amigo cada vez mais presente virar uma paixão. “Aquilo foi uma danação”. Com Arruda, a pintora, ainda diletante, conheceria o amor e a paixão. Quando o romance se tornou público, precisou abandonar o Recife. “De repente, todos me viraram as costas. Até os colunistas. Me tornei uma espécie de Sara da Bíblia. Não podia olhar para trás, sob risco de virar uma pedra de sal”.
Tereza conheceu de perto a foice do patriarcado sobre mulheres em busca de autonomia sexual e afetiva no século XX. Quando a mãe morreu, o irmão Murilo Costa Rêgo, então deputado federal pelo Rio de Janeiro, reuniu a família e veio enterrar a matriarca num jatinho fretado. Tereza precisou pegar sozinha um avião de carreira. Escondida da sociedade recifense, viu a mãe ser enterrada escondendo-se por trás de uma árvore no Cemitério de Santo Amaro. “Uma mulher me viu e quase cuspiu na minha cara. Hoje, quando me vê, faz a maior festa. Diz que é doida para comprar um dos meus quadros. Mas não esqueço”.
Vivendo em São Paulo, Tereza dava aulas de História num cursinho pré-vestibular quando soube: Diógenes Arruda havia sido preso pela ditadura de Médici. Foram anos até o amado ser solto – cego de um olho, costelas e mãos fraturadas nas sessões de tortura. “Cheguei a frequentar centros de umbanda para tentar descobrir o paradeiro dele”. Com a liberdade de Arruda, tinham certeza de que, mais ou menos dias, seriam mortos pela ditadura. Disfarçados de um casal rico de férias pela tríplice fronteira, pediram exílio no Chile. Ali, dividiram apartamento com o também exilado Geraldo Vandré. Não por muito tempo.
Ele tomava porres homéricos, fazia escândalos, tínhamos medo de ser descobertos por agentes infiltrados e mandamos ele para outro lugar”.
O sonho de estar na única república de socialismo democraticamente eleita da América Latina não duraria muito. Tereza estava no apartamento, a poucos passos do Palácio de La Moneda, quando ouviu as primeiras rajadas de metralhadora do golpe que mataria Allende para dar lugar a Pinochet na presidência chilena.
Arruda pulou o muro da embaixada argentina e seguiu para o país vizinho. Ela se recusou. “Eu ainda tinha um passaporte livre brasileiro, e não queria me tornar oficialmente exilada, para não perder o direito de visitar minhas filhas no Brasil”, ela lembra. “Todo dia, via os caminhões passando com mortos e os cadáveres pendurados nos postes chilenos”, relata. O exílio, então, se tornara inevitável.
Ao encontrar Arruda na Argentina, seguiriam para o exílio de mais de 10 anos entre França e Portugal. Morando na Europa, viu de perto a Revolução dos Cravos, privaram da intimidade dos governos comunistas de Enver Hoxha, na Albânia, e de Mao, na China, nas muitas viagens de solidariedade e articulação internacionais. Como Arruda tinha status para ser considerado um novo dirigente no caso de uma revolução comunista no Brasil, eram recebidos com honrarias de estado. Chegaram a participar de jantares laudatórios, mais de 20 pratos, cujo ápice e suprema referência consistiam no cérebro de um macaco vivo. “Fiz mil salamaleques e não comi. Era horrível ver aquela cena”.
Em Paris, a pintora assinava seus quadros com o pseudônimo do exílio, Joanna. Atualmente, só mantém um deles em casa. “O resto ficou por lá”. Na capital francesa, mesmo arriscando poucas palavras no francês no qual se tornaria fluente, chegou a fazer um mestrado em História na Sorbonne. “Fiz a seleção e, para minha surpresa, passei em primeiro lugar”, ri. “Eu poderia ter estudado qualquer coisa sobre arte, mas resolvi estudar a formação do proletariado brasileiro”, comenta.
Uma mulher e sua pintura
A felicidade de estar ao lado da pessoa amada, mesmo em circunstâncias difíceis como o exílio, seria alterada para um estado de tristeza profunda. Com a distensão gradual da Anistia, o casal resolve voltar para o Brasil no começo dos anos 1980. “A saudade das filhas, do Brasil e até do cheiro das frutas era insuportável”. Mas, se o destino sabe ser irônico, não poupou farpas sobre a pintora.
Três meses após o retorno, Diógenes seguia, por questões de segurança, num carro diferente do de Tereza para um grande ato no Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo em homenagem a João Amazonas, outro líder voltando do exílio. No meio do caminho, na mesma Rua Tutoia do DOI-Codi, onde fora tantas vezes torturado, o carro de Diógenes parou subitamente. Ao se aproximar, Tereza descobriu o companheiro morto por um infarto. “Me debrucei sobre o corpo dele morto e comecei a sacudi-lo. Você não tinha o direito de fazer isso! Não podia ter morrido agora. Teve tantas oportunidades para morrer e morreu justo agora”, dizia ela, molhada na dor e na lucidez de um novo renascimento. “Ali, com ele morto, eu pensei: chega, chega. Não serei mais a bisneta do Conde da Boa Vista, a ex-mulher do juiz, a companheira do líder político. Agora, serei eu, Tereza Costa Rêgo, uma mulher e sua pintura”.
Mulher nua deitada (1983) foi o primeiro nu da artista e será um dos vértices da exposição retrospectiva.
Com as poucas economias no bolso recebidas do Partido Comunista Brasileiro, o “partidão’, Tereza foi morar na Rua do Amparo. “Olinda passaria a ser meu útero. O lugar em que me tornei a mulher que nasci para ser. Até hoje, eu tenho uma relação muito tátil com Olinda. Eu não olho a cidade, mas acaricio esta cidade”.
Sobre a cabeceira de sua cama está um dos quadros seminais da retrospectiva de sua carreira planejada para os 90 anos de vida. Com tinta acrílica sobre os bilhetes escritos em papéis de cigarro Minister escondidos nos cabelos para entregar a Diógenes na prisão, o quadro A partida (1981) traz a figura de uma mulher de olhos perdidos debruçada sobre o corpo maduro de um homem de longos cabelos e barba brancos. O homem está morto; as figuras são Arruda e a própria Tereza. “Esse quadro é a minha Pietà”. A tela foi exibida na primeira exposição de Tereza, quando de sua volta à Olinda.
“Tereza tem coragem de pintar com tintas violentas momentos inevitáveis da História”, comenta Lontra. Arruda apareceria como personagem em outros quadros da artista. No tríptico de três por dois metros Procissão do Senhor morto (1992), no lugar do Cristo visto de sua janela no Amparo, durante o evento popular católico, quem aparece no caixão violeta é o rosto do amado.
Lontra esteve à frente do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães quando a instituição recifense expôs, no ano 2000, o conjunto de sete grandes painéis sobre episódios vertiginosos da história do Brasil. “É um dos conjuntos pictóricos mais expressivos do país”, diz ele, sobre os quadros que, juntos, formam uma independente obra maior. Batizado por sugestão da amiga e historiadora de arte Radha Abramo, o conjunto será exibido na retrospectiva da obra de Tereza.
Sobre ele, escreveu Radha: “A artista deu o título de Sete luas de sangue ao pesado trabalho das pinturas. Grande porque as áreas das pinturas são enormes e porque grande foi a profundidade e a diversificação dos dados históricos, transformados em cores e, muito pesado, o trabalho de mergulhar fundo em sensações não vividas… a artista pinçou o traço, o risco, o desenho e a cor apropriados para representar, às vezes, tantas mortes, e outras exibindo aglomerados das multidões, pontuando diversas áreas das composições plásticas”. No painel A pátria nua ou Ceia larga brasileira (1999), mandatários de diversas fases do Brasil, de Pedro I a Collor de Mello, dispõem do corpo esmaecido e despido de uma mulher, a pátria nua.
A artista hoje
Tereza tem pintado pouco. Muito pouco. No começo do ano, sentiu dores, mal-estares inexplicáveis. Havia se mudado recentemente para um apartamento de Casa Caiada, na orla de Olinda. A casa de três andares da Rua do Amparo está ocupada por sua reserva técnica (no meio dela, Tejucupapo) e com planos de ser transformada numa fundação para sua obra. “Estava ficando inviável morar numa casa com dois lances de escada para chegar ao meu quarto”. No começo de fevereiro, a artista precisou ser internada. Os médicos descobriram um infarto sofrido há meses e ainda com consequências. A artista vinha sofrendo pequenos e lentos acidentes vasculares cerebrais, que causaram desmaios súbitos. Operada para a colocação de um stent coronariano, permaneceu um longo tempo na UTI e, acostumada a renascer, está em casa. “Ainda tenho muito o que pintar antes de morrer”.
Os braços ainda não recuperaram a firmeza, mas Tereza já esboça os rabiscos do próximo painel. “Quero pintar uma série sobre a família”, deseja. “Esse quadro trará uma mulher de ventre aberto, observada por várias figuras”, diz ela, para quem a nudez sempre teve uma dimensão política. “Isso deve ser psicanalítico. Quando criança, tudo era proibido. Jovem, eu não podia frequentar as aulas de modelos nuas na Escola de Belas Artes do Recife. Eu não podia rir em público, não podia usar maiô. Quando minha mãe morreu, passei a pintar todas mulheres nuas que pude na vida”, diz ela, cuja representação de fêmeas despidas surge em 1983.
A série sobre os bordéis do Recife foi inspirada nas conversas dos irmãos que escutava clandestinamente.
O nu inaugural de Tereza, Mulher nua deitada, será um dos vértices da mostra, ao lado da série sobre os bordéis do Recife, pintada nos anos 2000.
Quando criança, fingia estar dormindo para escutar as histórias dos meus irmãos e amigos nos prostíbulos do Bairro do Recife. Cresci achando que tudo de importante na vida acontecia a partir de um bordel”.
As vaginas pintadas por Tereza são peças de uma sensualidade épica que faz dela uma pintora de libertação da mulher do patriarcado no século XX. “Com minhas mulheres nuas, eu finalmente me libertei da casa patriarcal em que vivia”, diz a artista. “A arte nunca estará distante da vida”.
por Bruno Albertim, Jornalista, antropólogo e escritor. Autor da biografia Tereza Costa Rêgo: uma mulher em três tempos (Cepe Editora) | Texto original em português do Brasil
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