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João de Sousa

Terça-feira, Julho 16, 2024

O tio

Taciturno, não era de muitas palavras, muito embora nele estivesse sempre presente a zombaria e o escárnio, sem pudor ou contenção. A invídia era uma tónica sua, e disfarçava-a com desdém e sarcasmo.

Recordo-o de compleição franzina, trejeitos efeminados, sobrando-lhe em descaramento e cinismo com que viveu toda a vida, para com sobretudo os mais próximos, aos mais distantes. Possuía claramente traços de psicopatia. A emotividade nele se fazia ausente, e quem lhe experimentou na pele o seu desequilíbrio patológico das emoções e da afetividade, pôde testemunhar como ele era capaz de sádica frieza, sempre sob uma fraude e disposição para enganar e ludibriar. Pouco dado à sociabilidade, a vida para ele se resumia à mulher – nove anos mais nova, muito embora aparentasse uma velhice acentuadamente precoce – e aos filhos, estendido depois aos netos. A mulher, essa, o acompanhava, sonsíssima e velhaca, e os dois viveram para o objetivo comum que lograram, por fim. A “mana”, como a denominava, atrasada e provinciana, pouco astuta e desarmada perante quem a bajulava constante e desavergonhadamente, nunca se apercebeu do único fim pretendido.

A juventude

Eterno estudante, termina o curso de Direito já adulto, no alto dos seus 33 anos. Foi o único filho, de três, que estudou. Dizia-se, à época, que por posições políticas, arrastava cadeira(s) nunca aprovada(s). Nunca se saberá da veracidade ou não do boato, embora certo a sua simpatia pelo partido comunista, votante depois, que, diga-se, transmitiu a simpatia à sua prole. Os progenitores, esses, coitados, querendo a todo o custo que pelo menos um dos filhos fosse doutor, arcavam com todas as despesas do filho mesmo que à custa de muitas delas e de anos intermináveis de estudos. Tal, no entanto, nunca constituía mossa alguma ao rapaz, que se apresentava sempre na última moda, fazendo-se passear com indumentária perfeita, nos mais variados modelos. Sempre que de regresso à terra que o viu nascer, de férias – e foram muitas – o desplante do moçoilo era tanto e tamanho que nunca lhe passava pela cabeça ajudar nas tarefas da lavoura a que o seu progenitor e irmão se dedicavam, de sol a sol, para, em grande parte, sustentarem a vanglória e a afetação do fidalgote. A progenitora e a irmã, ocupadas nas muitas lides domésticas de uma casa que a tal exigia, tão pouco exigiam que o ridículo insigne pusesse mãos à obra no que quer que fosse. Sem horários, ou trabalho algum a que se dedicasse, ocupando o quarto melhor da casa, era o protótipo do duquesito de toda a família, de quem anos depois fazia mofa e troçava, quiçá pela má educação de que havia sido alvo, ou já se lhe fazia parte da índole, insolente e procaz.

A casa das primas

No Porto, onde chegou a residir como estudante – as principais cidades do país o viram estudar e passear ou passear e estudar – viviam duas primas em primeiro grau, por parte materna. A mãe das primas, irmã de sua progenitora, dizia-se que no início, o recebia com todas as honrarias de que só o ridículo é capaz perante a insignificância do magriço, de tal forma que quando desses detalhes se teve conhecimento (dizia-se que até louça nova ela usava, daquela só para visitantes ilustres) a acrescentar a todas as outras, um riso zombeteiro incontrolável tomou posse dos que ouviram essas e outras estórias. Só quando a tia teve conhecimento que o presumido havia feito a uma das filhas, com a promessa de casório, e querendo repetir o mesmo à outra, recolhe-se, e recolhe a louça nova, e sem nada dizer a ninguém, sempre que o via daí em diante era um deus me acuda, que não estou em casa nem em lugar nenhum.

A sogra

Viúva, mãe de filha única, a casada com o tio, era uma senhora afetuosa e sincera. Lembro-a a falar do tio e das queixas que dele tinha, e da filha o seguir na rejeição e na implicância em relação a ela. E eu, nas vezes que estive presente, testemunhei a chacota e a mordacidade com que ele a presenteava, sem recato ou resguardo alguns. Quando ela adoeceu, vítima de Alzheimer, nem assim o tio dela se compadeceu, dando asas à animosidade com a sempre troça em pano de fundo. Viveu triste e só, como desabafou comigo diversas vezes. Foi por ela que soube que o tio desprezava ostensiva e implicativamente o filho do meio. Era o patinho feio que nunca deixou de ser, intelectualmente limitado e primário que nunca deixou de ser, hoje dedicando-se compulsivamente à fotografia com uma presunção e arrogância completamente desfocadas, sendo o seu maior escape para os seus complexos e recalques.

O irmão

Era tão nervoso e tão sem estrutura psíquica, que não podia estudar, dizia-se. Mas isso não o impediu que desde tenra idade trabalhasse nas propriedades da família, apenas recebendo o pão que comia com o suor do seu trabalho, árduo e espinhoso. Quando chegou à idade de fazer a tropa, é enviado para longe de casa dos progenitores; vendo-se a dormir em cima de um caixote de madeira, num lugar cheio de percevejos, escreve à progenitora a pedir algum dinheiro para assim poder alugar um quarto onde pudesse descansar e dormir. A mãe, justa que era, à época, e fazendo jus ao apelido, responde-lhe que se aguentasse, pois que o irmão estudante estava a fazer muitas despesas… Trata-se apenas de um episódio, entre tantos outros da diferenciação de tratamento entre os dois irmãos. Uma vez mais as despesas tais que apenas um único elemento da família fazia, a expensas de todos os outros. Como explicar toda uma situação per si já vergonhosa e que se prolongava no tempo e num espaço que parecia não ter fim à vista? Mais escandaloso é o próprio conseguir viver e conviver assim, sem pejo algum, achando-se no direito de todos abusar, agindo de forma a servir somente os seus interesses prejudicando todos os demais membros da família, mormente o seu irmão? O pior, no entanto, estava ainda para vir, como veremos mais adiante, e é de ver de que fibra era feito o latro.

A “mana”

Era no mínimo repulsivo o epíteto como a apelidava. Porque totalmente falso este soar a amor, a amizade, a proximidade genuína que nunca existiram. Enquanto viveu, ela nunca se apercebeu que o “amor” que ele lhe devotava era enganoso e fingido, e que o único objetivo eram os bens e o dinheiro, que ela, que nunca tivera uma profissão, um salário, ou alguma vez trabalhasse na vida, se tinha apoderado dos progenitores. Ele sabia-o, e comentava dentro de portas, que ela havia ficado com tudo (…). E com esse tudo ele queria ficar, posicionando-se como único herdeiro da “mana”, contando com o auxílio inestimável da mulher, que, em abono da verdade, nunca precisou de grande esforço para a falsídia e a impostura. O plano traçado, era assistir a um sem número de aproximações de modo a que ela acabasse por ceder, como, de facto, cedeu. Consumado o ato testamentário em que o constituiu como herdeiro universal, e à sua morte, os seus descendentes filhos, ela deixa o que nunca lhe pertencia ou alguma vez pertenceu por direito, porque nunca tinham sido feitas partilhas dos seus já falecidos progenitores, a raiz de toda a Herança por partilhar. O tio, esse, subamostra de juizeco tardio e carecendo de conhecimentos exigidos – como a sua vida de estudante o confirmou, aliás – aceita o ato, ou finge desconhecer os meandros da Lei. E tal como quando era estudante e se pavoneava por todo o lado sem embaraço algum, também agora se pavoneava arrebatando tudo o que também não lhe pertencia por Lei, por direito, e muito menos por ética, se soubesse ele alguma vez o que ética significava. Só depois do dito testamento, a levam para a cidade onde residiam, como se muito a quisessem e muito a estimassem. Tinha ela 87 anos. De estranhar que após o testamento, ela deixa a casa onde sempre vivera, e vai para um Lar de idosos. Passado apenas um ano de estadia no Lar, eis que morre. Com a notícia da sua morte, os abutres todos, pais e filhos, refastelados com a boa nova, sem uma lágrima, um gesto de pesar ou de dor, fazem-lhe o funeral como se de um banquete se tratasse. No dia seguinte ao funeral, era vê-lo ligeiro e lampeiro a caminho do banco… Depois, a caminho da Conservatória… Da janela da casa dos seus progenitores, mais parecia um alucinado, tresloucado de tanta satisfação.

O começo do fim

Mortos os irmãos, deserdado o irmão que não estudou e que tanto havia trabalhado para ele, o tio deserda de uma rajada só o irmão e as filhas deste, suas sobrinhas, aproveitando-se da orfandade destas de pai e de mãe, com uma delas sem modo de viver, sofrendo de leve limitação mental. Aberrante e maquiavélico é tudo em que este caso tocar. No fim, só restava ele. Há injustiças assim. Mas hoje chegou a hora dele. Parte o pior ser humano que a vida já alguma vez me dera a conhecer. Vieram buscá-lo os mesmos urubus cujas afinidades e energias ele atraiu a vida toda. E só agora tudo teve início, ele que julgava estar tudo terminado, almejado o intento. Desconhecia ele que cada criatura transporta a exclusiva bagagem do que houver semeado, e aprenderá, a duras penas, que a ordem, o equilíbrio, e a justiça são características imutáveis da Lei, em toda a parte.


Por opção do autor, este artigo respeita o AO90



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