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Terça-feira, Julho 16, 2024

O triunfo dos Pink Floyd

José Cipriano Catarino
José Cipriano Catarino
Professor (aposentado) de Português. Licenciado em Estudos Portugueses e Franceses pela Faculdade de Letras de Lisboa. Mestre em Linguística pela mesma faculdade.

Um testemunho desencantado

Foi no meu segundo ano de estágio — a profissionalização em exercício — que ouvi a canção dos Pink Floyd Another Brick in the Wall, quando colega de primeiro ano passou o vídeo The Wall num dos nossos seminários conjuntos:

We don’t need no education
We don’t need no thought control
No dark sarcasm in the classroom

Teachers leave them kids alone
Hey! Teachers! Leave them kids alone!

Era jovem, de sangue na guelra, de fortes convicções e fraco sentido das conveniências. Protestei, indignado: nós, que começávamos a carreira docente, tínhamos uma função fundamental na transformação da sociedade, uma missão com autêntico sentido religioso, ou éramos pragas, arreliadores de jovens, causadores de sofrimento e de infelicidade?

Dez anos após o 25 de Abril de 1974, os tempos e os costumes eram ainda muito formais, o respeitinho do velho regime habitava nas cabeças de colegas efectivos (os orientadores presentes), os quais prontamente saíram em defesa da sua protegida e orientanda: a música era  introduzir tema pesado, uma motivação, e jamais nos devíamos esquecer da ‘motivação’ inicial nas aulas para cativar os nossos alunos!

Era? E em vez de me calar, baixar os olhos, anuir com aceno de cabeça, humildemente acatar a réplica da orientadora, de pé, como pregador cuja fé o levava se necessário até à crucificação, falei, falei…

Hey, Teachers! Deixem os miúdos em paz? Na ignorância, nas ruas, na droga, para viverem como hippies enquanto durar a abundância que permite, conforme a letra da canção, comer carne a troco de pudim? Seria essa a missão dos professores — fechar os olhos, deixar os miúdos entregues à sua vontade, aos seus apetites? Teria razão  o servente de pedreiro que diariamente passava à minha porta de bicicleta cantarolando “ Todos havemos de ter / Sexo e drogas até morrer”?

Ou, pelo contrário, devíamos defender o valor da educação na transformação social, dar razão ao pai do Gaitinhas, nos Esteiros: “ manda o nosso filho para a escola. Sem instrução, será um escravo ou um vadio…” (p.19)?

Passaram os anos. A guerra entre a permissividade, o laxismo, o deixa-andar e a exigência prosseguiu cada vez mais penosa, mais custosa para os professores que se recusaram a ceder — ao Ministério da Educação, o principal e pior inimigo, aos iluminados por certas Ciências da Educação e as suas verdades incontroversas, sempre adaptadas às conveniências dos seus defensores, de boa parte dos pais, de elementos de direcções de escolas até.

Nas mesmas escolas, lado a lado, coabitavam turmas muito boas, de alunos exigentes, com encarregados de educação atentos e interessados na qualidade da aprendizagem dos seus educandos, com outras turmas de fugir, em que os professores fingiam não ver, não ouvir, desprovidos de meios para intervir com eficácia, sabedores de que se se queixassem às direcções estas lhes atribuiriam a culpa, jamais os meios, pois, todos os sabíamos, eles tinham sido retirados às escolas.


Dinamização de um dos seminários “O Triunfo dos Pink Floyd” (Foto: arquivo pessoal de José Cipriano Catarino)

No terceiro ciclo, reprovar um aluno — a retenção — tornou-se tão difícil e burocratizada que só muito excepcionalmente era aplicada e apenas se o encarregado de educação, por escrito, a autorizasse.

E nós ríamos, em parte a disfarçar a vergonha, em parte por mais não podermos fazer, ao ouvir um jovem gritar, espantado, após ver as pautas afixadas: “Tive dez ‘negas’ e passei!”

Ao mesmo tempo, foi imposto superiormente um modelo de avaliação de professores tão burocrático que estes se viram forçados a optar entre a sua formação e a dos seus alunos, tendo de frequentar acções de formação não raro desajustadas da sua área de docência, frequentemente de fraca qualidade e de duvidoso contributo para a sua prática lectiva.

Foi o tempo da proliferação dos projectos: tantos que, por exemplo, para poder manter o meu clube de karaté, sem qualquer compensação, teria de apresentar CINCO! documentos ‘estruturantes’ iniciais, devidamente articulados com o Projecto Educativo da Escola, com o Plano Anual de Actividades, afora os relatórios em cada período e a respectiva avaliação de projecto em final de ano lectivo! E isto para que a escola me disponibilizasse  uma parte do ginásio em período não lectivo, i.e., à noite!

Pouco importava o quanto o professor se esforçava, a qualidade das suas aulas, o sucesso dos seus alunos em exame nacional, as entradas destes nas faculdades e nos cursos pretendidos. As folhas de Excel, os relatórios em Word, ilustrados com gráficos, o auto-elogio contavam muito mais e, em caso de reclamação de encarregado de educação, eram esses documentos, juntamente com as longas justificações em acta, que defendiam tant bien que mal  o professor — tendencial e inevitavelmente réu e, antes de mais, culpado por não ter, antes de mais, dado ao aluno a nota que este pretendia e obrigar os colegas a perder tempo em longas reuniões de Conselho de Turma, frequentemente repetidas até desfecho favorável ao aluno!

Ironicamente, nas reuniões intermináveis, eu recordava as palavras de uma professora citada por Sebastião da Gama no seu Diário: “Temos uma profissão maravilhosa, e ainda nos pagam por cima!”

Os Pink Floyd venceram. O desinteresse instalou-se, paulatinamente, irremediavelmente. “Dar” as suas aulas, fazer o que mandam, mostrar uma molhada de dossiers organizados segundo o figurino, e comprovativos de que tudo está em ordem, logo a obrigação cumprida, tornou-se obsessão docente.

E os alunos, cada vez mais esquecidos, deixados “alone” com os seus telemóveis, ou alheados a olhar pela janela, à espera que o tempo passe, que seja novamente intervalo, melhor ainda, que tenham “furo”, que eles adoram a escola, só as aulas a estragam — a não ser que vejam uns filmes pirateados pelo professor, ou tenham umas visitas de estudo, ou o prof os leve para a biblioteca, mediateca, o que quer que seja, onde possam conversar entre si, jogar às cartas ou nos computadores, namorar, disparatar frequentemente, a pretexto de umas pesquisas sobre a igualdade de género…

A realidade é mascarada com estatísticas e estudos, os quais, invariavelmente, comprovam que o ensino nunca esteve tão bem; mas por detrás, há a iliteracia galopante, os chumbos ano após ano a Matemática, a Física, a Inglês, com o consequente afastamento dos alunos das áreas científicas…

Mas até nos grandes desertos há oásis; e como na canção de Manuel Alegre, a Trova do Vento Que Passa,

Há sempre quem resista
Há sempre quem diga não“

mesmo sabendo que rema contra a maré, mesmo ciente de que lhe não faltarão dissabores. Não faltam, felizmente, alunos interessados, trabalhadores, pais que os acompanham e se batem não contra os professores, mas a seu lado, cientes de que ambos querem o melhor para os seus filhos, mas atribuído com justiça, com equidade, por mérito e não por favor. Não faltam professores que se batem quixotescamente contra as orientações do Ministério da Educação, contra o laxismo, contra o deixa-andar, fazendo tábua rasa das instruções superiores, que insistem em recomendar, por palavras veladas, dúbias:

“Teachers leave them kids alone
Hey! Teachers! Leave them kids alone!”

 


Publicação original no magazine Synapsis



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