Existe um fio condutor cada vez mais evidente a ligar o burkini de Verão aos massacres de Aleppo, o contragolpe de Erdogan à Primavera Árabe falhada, a desconfiança para com os refugiados ao véu islâmico. Foi identificado num pequeno livro de 2004 de Avishai Margalit e Ian Burma chamado Ocidentalismo.
O Ocidente teve uma revolução científica e uma revolução industrial que o enriqueceu materialmente, ligando o crescimento económico à ruptura com a sociedade tradicional e com a religião. Esta imagem de modernização foi a rampa de lançamento do Ocidentalismo. Os líderes de países não-ocidentais quiseram reconstruir as suas sociedades com base num modelo científico que deitaria fora a tradição.
Já em 1700, Pedro o Grande da Rússia mandara os nobres cortar as barbas e os sacerdotes pregar as virtudes da razão. Desde então, muitas guerras foram declaradas ao Ocidente em nome da alma russa, da raça germânica, do Xintoísmo japonês, do comunismo soviético. De todas as revoluções do Terceiro Mundo, o presidente Mao foi o grande ocidentalista e destruidor de tradições.
Mas deixando de lado Mao Zedong, Estaline e Hitler que pertencem a outra constelação totalitária, concentremos-nos no ocidentalismo de Kemal Ataturk, na Turquia ou de Reza Pahlevi no Irão, de Nasser no Egipto e dos príncipes sauditas.
Chegado ao poder em 1923, Ataturk transformou a vida social da Turquia. Aboliu o vestuário oriental: véu, turbante, fez. Estabeleceu um sistema de educação secular. Tornou o secularismo uma religião política. E contra ele agora se revolta o partido de Erdogan, como aliás em Marrocos.
Quando Reza Shah Pahlavi tomou o poder no Irão com um golpe de Estado em 1921, trouxe a emancipação feminina e a destruição de privilégios tribais. Como outros modernizadores, atacou as formas tradicionais de vestuário. Soldados mandavam as mulheres retirar os véus, e os clérigos os turbantes. Os crentes foram proibidos de ir a Meca; os seminaristas que protestassem eram mortos a tiro.
O seu descendente, Mohammad Reza Pahlavi casado com Farah Diba, uma princesa que piscava os olhos ao Ocidente, tinha igual apreço pelo ocidentalismo e desprezo pela religião. Mas aos olhos dos revolucionários do Alcorão, era um idólatra e foi deposto em 1979 pela revolução islâmica. Taleqani (1910-1979) promoveu essa noção da idolatria dos ocidentalistas e moldou a ideologia da revolução islâmica no Irão e fundou o Fada’iane-e Islam, donde emergiram os Ayahtollas.
Sayyd Qutb, o ideólogo egípcio da Irmandade Muçulmana no séc. XX, inspirador da Al-Qaeda de al-Zawahiri e Bin Laden, via a idolatria em tudo. Desde o Cairo decadente aos bairros de Nova Iorque, o mundo vivia na luxúria, ganância e egoísmo. Para terminar isto, o mundo deveria ser governado pelas leis de Deus. O estado islâmico traria a guerra santa e permitiria aos homens superar ambições egoístas e opressores corruptos. Os alvos imediatos eram os governantes ocidentalizados das nações muçulmanas. A seu tempo viria a guerra contra os judeus e os países ocidentais.
Na Arábia, a aliança entre a dinastia saudita e o credo Wahhabita, pregadores e guerreiros, permitiu a conquista das cidades santas do Islão com o apoio dos britânicos na Primeira Guerra Mundial. O Wahhabismo tornou-se a ideologia oficial de uma sociedade muçulmana puritana nos anos 20.
Entretanto, jorrou muito petróleo dos poços e as riquezas sauditas mudaram as regras do jogo. Milhares de príncipes sauditas são milionários. Mantêm uma aparência de wahhabismo mas desfrutam de tudo o que o Ocidente pode oferecer. E o que Riade não fornece, Londres tem em abundância. Contra esta hipocrisia sem limites revoltou-se Bin Laden e lavra a guerra no Iémen de que pouco se fala.
Os islâmicos radicais culpam judeus e cristãos por sucumbir às novas idolatrias do dinheiro e da luxúria mas tentam saldar as contas com os ocidentalistas dos seus países, antes de se virarem contra os países ocidentais. Por vias guerreiras como o ISIS na Síria, ou com manobras eleitorais, como no Egipto.
O Ocidente, definido pelos inimigos, é uma ameaça porque as promessas de conforto material, liberdade individual e dignidade de vida deitam abaixo as pretensões de vida heróica. Escreveu Werner Sombart em Mercadores e Heróis, de 1915, que a guerra cultural entre a Inglaterra e França, era um confronto entre os oportunistas da Europa Ocidental e a Alemanha que é a nação de heróis capazes de sacrificar-se por ideais. Um ocidental que usa o Ocidente contra si próprio, como muitos outros desde Ernst Juenger até aos movimentos de extrema direita na Europa actual.
Esta noção de que falta sacrifício e heroísmo no Ocidente democrático, leva jovens a inscreverem-se no Daesh; leva os ocidentalistas a considerar o Ocidente como decadente no pensamento e nos costumes; e traz aos ocidentais atarantados a cegueira de que tudo se perdeu: a flauta mágica; a religião; o romantismo dos heróis.
Aos olhos dos ocidentalistas, a mente do Ocidente é sórdida, boa para escolher meios, mas inútil para encontrar o caminho certo. E os norte-americanos colocam-se a jeito para esta leitura, ao contrário dos esforços feitos pela Sociedade decente, o outro grande livro de Avishai Margalit onde se indica como ultrapassar o Ocidentalismo.