A cultura humanista europeia que se foi afirmando depois do século XVI faz naturalmente da criança o centro de todas as atenções, dado que é ela que incarna a humanidade de forma mais clara. Da mesma forma, todo o quadro legal de protecção do trabalho começou pela defesa da criança que se mantém até aos nossos dias como o centro de toda a atenção social.
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A herança de Isaac
As chamadas religiões abraâmicas, o judaísmo, cristianismo e islão, dão grande importância à suspensão do sacrifício de Isaac pelo seu pai que simboliza o fim do que parece ter sido prática corrente nas civilizações do Médio Oriente onde estas primeiro floresceram. A prática parece ter sido também corrente pelo menos na Europa, em África e na América.
A cultura humanista europeia que se foi afirmando depois do século XVI faz naturalmente da criança o centro de todas as atenções, dado que é ela que incarna a humanidade de forma mais clara. Da mesma forma, todo o quadro legal de protecção do trabalho começou pela defesa da criança que se mantém até aos nossos dias como o centro de toda a atenção social.
O pedo-crime, ou seja, o atentado aos direitos da criança, ou, especificamente, os comportamentos de abuso da criança, são a justo título consideradas como dos comportamentos mais combatidos pela nossa civilização.
Sendo a guerra, toda ela, algo de desumano – e pessoas bem formadas, nomeadamente as envolvidas em teatro de guerra, têm por ela uma repulsa e só nela se envolvem na medida em que isso é necessário – são especialmente inaceitáveis para todos nós as práticas que não procuram minimizar os seus efeitos em civis e muito em particular nas crianças, e mais ainda as que fazem das crianças alvos privilegiados.
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A revolução islâmica no Irão
A invocação da religião para a guerra – a chamada guerra santa – é extremamente vulgar e dominou o mundo muçulmano até à actualidade. A conquista do Xerifado de Meca pelo clã dos Sahud e a subsequente fundação de um país baseado na doutrina fundamentalista do wahabismo inscrevem-se na sequência das infindáveis guerras dos vários clãs que varreram a região desde a fundação do Islão, invocando sempre de forma mais ou menos central a Jihad.
A revolução islâmica do Irão é uma Jihad de tipo diferente. A religião é aqui invocada como fundamento de uma revolução global e totalitária, em ruptura não só com as instituições tradicionais mas também com heranças civilizacionais como o sejam a preservação dos direitos da criança.
A utilização das crianças como carne de canhão para a guerra é cedo assumida como uma imagem de marca do regime. A explosão-suicida de uma criança contra um tanque iraquiano é publicitada como exemplo dos atentados suicidas que se vão suceder, bem como a utilização massiva de crianças para rebentar minas nas ofensivas do regime contra território iraquiano.
A propaganda oficial do regime, difundida como ‘testemunho de guerra’, entre outros por Robert Fisk, apresenta as crianças iranianas que se fizeram explodir aos milhares como movidas pela religião. Os muitos testemunhos que recolhi de refugiados iranianos que viveram esses tempos como crianças dão uma imagem completamente diferente: crianças forçadas a avançar sobre os campos de minas sob pena de ser metralhadas caso recuem.
Os movimentos jihadistas, como o Hamas ou o Hezbollah apresentam frequentemente os seus exércitos de crianças de seis ou sete anos com armas de guerra, e mais recentemente o ditador jihadista turco apelou publicamente ao “martírio” de crianças.
A exposição propositada de crianças à guerra para as apresentar como vítimas do inimigo passou também a ser um instrumento de desinformação do jihadismo, em particular nas guerras contra Israel, com a transformação de escolas e hospitais como bases de lançamento de mísseis, entre outras práticas mais sórdidas ainda.
Na preparação do próximo ataque a Israel, a generalidade das bases de mísseis do Hezbollah no Líbano encontram-se disseminadas entre as populações, a fim de se poder acusar as forças israelitas de ataques a crianças assim que estas ripostarem.
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O teatro de guerra sírio
Desde o início do ano, as Nações Unidas registaram já mais de mil crianças mortas em guerra na Síria, especialmente na periferia de Damasco, numa área conhecida por Ghouta oriental, teatro de algumas das maiores atrocidades cometidas pelas forças do ditador Assad apoiadas pela coligação irano-russa.
Parte dessas vítimas resultou dos sete ataque químicos já registados este ano (cerca de duas centenas desde o início da guerra em 2011), sendo que os bombardeamentos aéreos têm deliberadamente escolhido alvos civis como hospitais e têm como principal objectivo tornar a vida impossível nas áreas que não estão sob seu controlo.
A selvajaria e barbaridade têm sido constantes, sendo que é surpreendente a forma como as instituições internacionais têm aceite a continuação deste estado de coisas ao longo de sete anos, esperando aparentemente que a realidade se autocorrija. Esta, em vez de se autocorrigir, vai assumindo como nova norma a total imoralidade.
O Ocidente começou por passar procuração à Turquia de Erdogan para esta assumir o papel da oposição, e esta, para além de garantir o total apagamento do Ocidente do teatro de guerra colaborou com os outros actores no terreno para transformar o que era um protesto civil numa guerra de gangs jihadistas.
Perante a cisão da Al-Qaeda e o assumir de papel de primeiro plano do grupo originalmente formado no Iraque, resolveu então fomentar apoiar tudo e todos em nome da guerra ao ISIS, tendo sempre tido uma posição inconsistente perante os únicos actores que tinham credibilidade no terreno: as várias facções curdas.
O Ocidente transformou então a guerra da Síria num problema interno de refugiados, consequência inevitável da sua política de avestruz, e foi incapaz de erguer uma posição coerente, baseada em princípios, com alianças estratégicas sólidas, e com isso não só minou qualquer possibilidade de aparecer como actor independente no terreno como alimentou uma crise interna que ninguém sabe ainda onde vai parar.
Os populismos europeus – de que assistimos a mais um crescendo com as passadas eleições italianas – vão corroendo a base civilizacional em que assenta o projecto europeu e a aliança atlântica, e tornam-na cada vez mais vulnerável à expansão da barbárie, que vemos nas nossas fronteiras, para dentro de portas.
O massacre das crianças sírias não é um problema humanitário local; é o maior sintoma de uma crise civilizacional a que urge dar resposta.