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João de Sousa

Segunda-feira, Dezembro 23, 2024

Odeio necrologia. E nunca soube pronunciar Bourdain

Podia citar cinco frases entre aspas. Podia recordar expressões que me ficaram: não me lembro de nenhuma. Podia fazer compilações de todos os que falam dele. Mas esta coisa das despedidas para o além ou referir-me a personagens mediáticas provoca-me erupções cutâneas. Acho sempre que não tenho de julgar alguém que decidiu ir saborear iguarias por aí.

Para mim, não tem qualquer interesse o anónimo falar sobre um viajante que partilhou o desconhecido. Ou tentar alcançar as experiências que o anónimo não viveu. Alguém que fala sobre o que outro vivenciou é ilegítimo. Querer explicar o que foi o “Indiana Jones” da Culinária não me parece atingível. Pergunto o que me deixa um António que não conheci? Um chefe que não experienciei mas que refere o chouriço, a morcela, as tripas à moda do Porto, e é convidado para visitar o Ramiro?

Odeio a necrologia – quero sublinhar. Optei por não ler nada antes de escrever sobre alguém que nunca toquei. Vi. Falei. E que ganhava a vida a comer e a viajar. Que pornográfico! Que começou por lavar pratos e mais tarde foi chefe de cozinha durante 28 anos. Ignoro o que serão as primeiras páginas. Nunca tive tendência para elogiar quem já não está. Chegarão tarde as palavras. Até fiquei irritada por perceber que longos minutos são retratados em histórias de alguém que foi protagonista de um reality show gastronómico. Como digo, não o conheço. Tenho dificuldade em escrever sobre quem é mediático. Nem sequer estive à sua mesa a beber uma imperial. Nem um copo de Bonifácio. Até lhe podia ter oferecido um trago de medronho em Cachopo, ou partilhado a sua mesa com o ensopado de enguias em Guerreiros do Rio. Mas não deu. Nunca tive essa oportunidade. Degustar as ervas da ribeira da serra de nome Caldeirão nos pratos lascados pelo uso num espaço de três metros quadrados, seria com certeza um bom cartão-de-visita para Bourdain. Ou perceber que depois do Vale do Junco, se passa por Vale da Murta, Portela dos Vales e Portela da Corcha e se vai pela Cabeça Gorda em direcção ao nunca… E, de facto, horas depois, longe da turistagem, onde não se sente gentrificação, se chega a uma placa que diz Ti Rosa, e ao lado outra que podia gritar Bem-Vindo Bourdain. Em frente uma Famel. Uma Zundap, ou Zundapp, não interessa. Alguém diz nada. Outros “Bô” tarde. Ninguém é simpático. E seguimos para provar a Açorda da Galinha, nunca experimentada. Bourdain estaria aqui, tenho a certeza! Até porque aquela Galinha é da gente. Da gente que lá vive. Que cuida da Galinha, do Galo, do mel, da azeitona, da uva. Simpatias às voltas e muita rudeza sem rodeios. E do mel, do mel daquela gente que Bourdain estaria à conversa até ao final dia e quando voltasse para o seu “covil” levaria três frascos, mais um de azeitonas, mais outro de batatas e mais 0.75 de algo destilado sem nome e sem rótulo. E eu, o que aceitava? O que Bourdain me deu: Viajar no meu sofá. Querer apanhar a ida sem conseguir agarrá-la de tão rápida que ia. Bem… não é bem isto, o que queria não era isto. O que queria era mesmo segui-lo. Estar lá. Mas ele conseguiu mover-me. E eu consegui movimentar-me. Era alucinante vê-lo a contar histórias. E eu queria lá estar, nas suas histórias. Por vezes não corria bem, e ele não mentia. Capotar numa mota, tomar uma cachaça alucinogénia ou provar carne podre de tubarão conservada em ácido foram experiências que partilhou sem legendas porque decidiu apanhá-las. E todos estávamos lá. Todos as vivíamos. Posso dizer que ficava longe quando queria falar delas. Das suas históricas únicas. E o que mais me custava era não saber pronunciar Anthony Bourdaine,  Borrrdam, Bordan…

Revelou “sem reservas”, numa entrevista ao Expresso, que gostaria de ser recordado “como alguém que, afinal, não era assim um tão grande sacana”. E, sem rodeios, num hotel de Estrasburgo, França, o norte-americano António morre aos 61 anos, de forma politicamente incorrecta, no quarto que não era o seu.

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