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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

“Offshores” e hipocrisia política

João Vasconcelos Costa
João Vasconcelos Costa
Investigador e professor universitário (Virologia Molecular), depois dirigente de um instituto de investigação, ensino e cooperação, hoje reformado.

Os “Paradise papers” causaram indignação, na comunicação social e mesmo nos meios políticos, incluindo vozes de áreas do centro e da direita. Já é a segunda vez, depois dos “Panama papers”. Leio que são diferentes. Enquanto que o caso Panamá diz respeito a variadas formas ilegais ou criminosas de utilização dos paraísos ficais, no caso “Paradise” tratar-se-ia “só” de fuga a impostos ou aproveitamento de vantagens fiscais.Os “Panama papers” revelaram um mundo complexo e imbricado de operações financeiras com base em “offshores”, algumas legais, como o simples depósitos de contas com obtenção de vantagens ficais ou com garantia de anonimato de negócios, outras claramente ilegais, designadamente esquemas em pirâmide (Ponzi), lavagem de dinheiro, falsificação de contabilidade ou pagamento de subornos a políticos. Só uma firma do Panamá, a Mossack Ferreira, mediava operações desse tipo com mais de 500 bancos que, com as suas filiais e subsidiárias, detinham cerca de 15600 companhias “offshore” ligadas à Mossack Fonseca.

Embora sem evidência de ilegalidades flagrantes, o caso de agora relata uma situação semelhante.

Os bordéis do capitalismo

Como os bordéis tradicionais, os paraísos ficais são os bordéis do capitalismo e, como aqueles, servem para coisas às escondidas mas que são essenciais ao funcionamento do sistema. Cada vez mais se vê que não são ilhas isoladas, mas sim uma rede sistemática por onde circulam o capital, dificultando a sua identificação e fugindo aos controlos, principalmente os ficais. Quase todas as grandes empresas têm filiais “offshore” que, no conjunto, funcionam como uma gigantesca câmara de compensações.

São mesmo os políticos do sistema que agora se mostram preocupados, mesmo índignados… Perguntam-se se esta situação é justa, se é moral, se não se foi longe demais.

A indignação, vinda de pró-capitalistas, parece-me clara hipocrisia. Põem em dúvida princípios básicos do capitalismo, sistema que não criticam e com que se acomodam muito bem? Claro que não. Assim, aceitam que o lucro é o princípio da economia e da vida social e portanto, aceitam como normas basilares das nossas sociedades a maximização das receitas e a redução das despesas, incluindo as fiscais.

O que estamos a tratar é da transferência de capitais, para onde são menos tributados. Ora, para o pensamento único, a livre movimentação do capital é uma liberdade fundamental. Não é por acaso que, nos objectivos da União Europeia, desde o Ato Único, essa liberdade e sua garantia vêm expressas antes da livre circulação dos cidadãos. E a globalização, tão celebrada pelos índignados de agora, passando pela deslocalização de empresas, também está ligada à circulação de capitais, procurando abrigos mais vantajosos.

Welcome to Paradise

Mas então, se tudo no “Paradise” parece legal, porque criticar essa engenharia fiscal? Porque, dizem, apesar de legal, não é moral! Mas desde quando há moral nos negócios, na finança? E o que é a moral, em abstracto, sem referência a princípios, valores e ideologia? E não conhecemos tantos casos de políticos que desvalorizam a “ética republicana”, defendendo-se com o argumento de que se a lei permite então é moral?

Referi os “offshores”. Não são só aquelas ilhas exóticas das Caraíbas, mas que chegam também às ilhas adjacentemente inglesas, a Gibraltar e até à Madeira. Paraísos ficais podem também ser até estados, como Malta, Liechtenstein ou a respeitável Holanda que acolhe Jerónimos Martins ou Sonaes como se lá estivessem as empresas, fisicamente, em pessoal, em equipamentos e em consumidores.

O comissário europeu Moscovici mostrou-se indignado com o caso Paradise, falando no Parlamento Europeu, mas esquece que o seu presidente, Juncker, enquanto primeiro ministro do Luxemburgo, não só fazia do seu país um paraíso fiscal como ia ao ponto de fazer disso uma espécie de mercado fiscal, negociando individualmente com empresas estrangeiras o seu estatuto tributário.

No entanto, os “offshores” são só um elemento periférico do sistema. Uma estimativa do The Economist refere que neles estão 20 biliões (milhões de milhões) de dólares, mas na maior parte geridos por praças financeiras centrais, como Londres ou o Delaware.

O sistema financeiro baseado nos paraísos ficais “offshore” tem, obviamente, pelo menos duas consequências políticas de interesse geral. Por um lado, retiram às receitas fiscais proventos necessários à satisfação do funcionamento do Estado e em particular do Estado social de bem-estar. Por outro, minam a confiança nas regras e no sistema, legitimando o sentimento geral de que é aceitável que qualquer um, não só os ricos, tente fugir às suas obrigações.

Opacidade total

Em paralelo com a questão da evasão fiscal, critica-se também a falta de transparência das operações “offshore”. Transparência, hoje termo sempre na boca dos políticos mais opacos. Desde quando há transparência na política, nas relações internacionais com toda a colecção de tratados e anexos secretos, nos negócios, em que a transparência incontrolada até pode prejudicar a competição? E há alguma transparência e verdadeiro escrutínio, por exemplo, no funcionamento da União Europeia e, em particular, do BCE?

Repito: muita da indignação suscitada pelo caso Paradise é hipócrita. Argumentei como advogado do diabo mas claro que, a sério, não legitimo de todo esta desregulação. Apenas considero que se trata de um problema sistemático, que não se resolve no seu âmbito exclusivo.

Como resolver? Qualquer tentativa de controlo desta situação esbarra com a contradição entre o sistema financeiro ser global e as legislações serem nacionais. Quando muito, poderia haver legislação da União Europeia, mas, no conjunto, seria ineficaz e mesmo, do ponto de vista capitalista, poderia pôr a UE em desvantagem competitiva.

Por isso, como sempre, boas intenções, declarações de condenação, promessas de solução, e depois nada. E até já são relativamente antigas as propostas comunitárias, nunca aprovadas, essencialmente: acabando com os paraísos ficais europeus; estabelecendo margens para as taxas fiscais a cumprir pelos estados da UE; penalizar as empresas europeias que façam operações com os restantes paraísos fiscais; publicitação dos impostos pagos pelas multinacionais; regulamentação da actividade dos intermediários fiscais (advogados, contabilistas, consultores, bancos).

É o Capitalismo, Estúpido!

Porque é que nada disto tem passado da gaveta é simples de se compreender. Tudo isto limita a dinâmica capitalista e a globalização e só será adoptado se não houver remédio. É quando tiver de ser “vão-se os anéis…” Ainda vem longe. O capitalismo só se autorregula em crise, em último caso, quando os vícios da desregulação ameaçam o próprio sistema, como na crise que começou em 2007.

Parafraseando Clinton, “it’s the capitalism, stupid!”

 

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