A concretização do Brexit, sob qualquer das formas que possa vir a assumir, a par com a decisão da administração de Donald Trump de cortar com uma série de tratados e acordos internacionais parecem claros sinais de ruptura com um modelo de organização internacional que orientou o Mundo do pós-guerra.
Aquele Mundo onde os EUA assumiram um papel de hegemonia com o Acordo de Bretton-Woods, reforçado após a Queda do Muro de Berlim e a implosão da URSS, mas que parece agora de uma extremamente curta duração (quase tão curta como a do Reich que derrotou e pretendia durar mil anos) e ainda maior instabilidade.
Esta sensação de instabilidade é aliás sintoma do desaparecimento gradual de todos os laços da estabilidade conhecida no Mundo do pós-guerra (organizações internacionais, tratados, alianças, etc.), de que a denúncia do tratado INF (Intermediate-Range Nuclear Forces) entre russos e americanos é apenas um exemplo. Visto como um sinal de potencial confronto leste-oeste, merece ser observado com maior detalhe, tanto mais que o primeiro gesto de crítica ao acordo surgiu de Moscovo e o principal visado na nova situação pode bem ser uma China que, mantida fora daquele acordo, disso mesmo beneficiou no seu processo de armamento, ou até uma Europa que deverá perder os “benefícios” do chapéu-de-chuva nuclear norte-americano e enfrentar as suas próprias (e específicas) necessidades de defesa e de projecção de força.
Num período em que se questionam os próprios fundamentos do paradigma mundial, aceleram-se as inevitáveis convulsões ao nível dos sistemas financeiro, monetário, democrático e de governança e enquanto nos aproximamos do ponto de não retorno continua a fazer-se sentir a ausência das lideranças esclarecidas que orientem o processo.
Assistimos a isso mesmo na denúncia americana do Acordo de Paris para o combate às alterações climáticas ou na questão venezuelana, com as ameaças de uma invasão norte-americana para desapear Nicolas Maduro do poder no que será a contrapartida para uma Síria abandonada aos russos, naquela que poderá ter sido uma tentativa (mais uma…) para levar turcos e iranianos a um acordo com sauditas e israelitas para construir um projecto de paz no Médio Oriente; assistimos também a avanços e recuos naquela que foi a fracassada tentativa norte-americana de projectar os sauditas para a liderança regional e para um acordo de paz na região que está agora a culminar com a perda do controle saudita na guerra do Iémen, onde até já o moderado regime marroquino (tradicional aliado saudita) abandonou a coligação sunita que tem combatido a facção iemenita dos houthis.
Noutras latitudes temos a promessa de paz coreana, apesar da mais recente Cimeira entre Trump e Kim ter terminado abruptamente e sem acordo, que entregará o controlo da região a russos e chineses, quando as negociações ditas comerciais entre estes e americanos devem estar a incluir outras realidades como princípios de co-governança e partilha do Mundo, acabando por se transformar numa espécie de Yalta 2, o recente acto terrorista na fronteira indo-paquistanesa na Caxemira que aumenta os riscos de guerra indo-paquistanesa (duas potências nucleares deixam a guerra à distância de um erro de cálculo) e reforça o estigma internacional contra os muçulmanos enquanto esquece as provocações e perseguições do BJP (o partido nacionalista do primeiro-ministro Narendra Modi) que procura beneficiar do atentado nas próximas eleições através de uma clivagem religiosa que polarize o eleitorado, ou o Brexit que obrigará à redefinição dos princípios de cooperação entre os estados europeus que poderá criar a oportunidade para que estes encontrem novas margens de actuação, como indica o exemplo do recém criado INSTEX (o Instrument Support of Trade Exchanges é o novo mecanismo de pagamentos internacionais criado, em finais de Janeiro deste ano, pela Alemanha, França e Reino Unido para assegurar o comércio com o Irão) que além de afrontar a decisão norte-americana de aplicar sanções económicas ao Irão ainda revela a capacidade dos países europeus verem além do Brexit.
Estas boas notícias não eliminam, porém, os pontos de fricção que persistem na UE, como o movimento dos “coletes amarelos”, a crise diplomática franco-italiana a eles ligada ou a delicada situação catalã, que serão até sintoma dos próprios tempos de transição, mas um sintoma onde germinam as agendas radicais dos “populistas” e as agendas de segurança das tecnocracias que podem acabar com a Europa de liberdades que conhecemos.
Apesar de continuarem por abordar as delicadas questões da regulamentação financeira e da liquidação dos offshores, também nesta área surgem sinais de mudança que poderão contribuir para a resolução de alguns dos seus crónicos problemas, como sejam as criptomoedas; isto apesar das dúvidas e dos riscos a elas associados, embora até já o FMI fale nos novos ventos da digitalização, e toda a revolução que poderão trazer as fintech (empresas de inovação tecnológica nos serviços financeiros) com a promessa de simplificação de alguns dos serviços burocráticos e caros disponibilizados pelos bancos, passando a resolver tudo numa empresa muito mais prática, rápida, barata e descomplicada.
A tudo isto a imprensa ocidental pouca atenção tem prestado, continuando mais preocupada em julgar e criticar que em informar e explicar as questões complexas e as políticas enfrentadas pelas nossas sociedades e pelos seus líderes.