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Quinta-feira, Novembro 21, 2024

Onde está a Catalunha?

Alexandre Honrado
Alexandre Honrado
Historiador, Professor Universitário e investigador da área de Ciência das Religiões

DO AVESSO

Hesitei entre temas para trazer a esta coluna, e acabei a refletir sobre três notícias de origem diversa e convergente preocupação. Uma delas mostra uma praia espanhola, com banhistas bronzeados a surpreenderem-se com a chegada de uma barcaça carregada de refugiados – cerca de meia centena; mal o barco tocou na areia partiram a correr para parte incerta, pois os novos escravos do século XXI vivem nessa direção: sempre para parte incerta.

A outra notícia, que vale o que que vale, traz as declarações daquele que será um alto funcionário da CIA. Pela primeira vez alguém parece ter o atrevimento de interpretar as ameaças norte-coreanas e as respostas de Trump de uma forma realmente nova. Por exemplo, ao dizer que a última coisa que o líder coreano Kim Jong-un quer é um confronto na península da Coreia. Jong-un o que gostava mesmo era de ir assistir ao vivo a um jogo da NBA, diz outra notícia, usando como base a primeira. E Trump joga e faz bluff, e não sabe bem o que fazer, para além da verborreia que, aliás, é a mesma que o levou ao topo (quem o elegeu que se penitencie e nos peça desculpa, já agora).

Todos os prepotentes, mesmo os pequenos ditadores caseiros, que perdem a razão com o seu autoritarismo e atos de egocentrismo mais ou menos amplos, criminosos em miniatura, demagógicos sem exceção, estão sempre condenados pela história – que lhes reserva como destino apodrecerem na lixeira que os próprios criaram com denodo e por vezes impunidade. De grandes líderes a pequenos chefes, é sabido.

A terceira informação que circula de modo modesto pelo estranho mundo da comunicação social é esta: a Índia testou com êxito o lançamento aéreo de um míssil supersónico, o BrahMos.  Atingiu o alvo a 280 quilómetros de distância no golfo de Bengala. O míssil foi largado da fuselagem de um avião Su-30 e o motor de duas fases do míssil foi ativado, transportando o míssil na direção do alvo marcado.

Vamos então por partes. Depois de ocuparem mais do que novos acampamentos miseráveis em partes desconhecidas do mundo ocidental, ocuparam capas de jornais e de revistas,  prioridades de telejornais e noticiários de rádio, os refugiados, apesar de serem milhões e de continuarem a chegar à Europa, passaram para segundo, depois para último plano, e praticamente desapareceram das notícias. Um desembarque em terras de Espanha – na Andaluzia e aqui tão perto – em agosto deste ano, foi só agora timidamente referido! Não apenas o efeito comercial da notícia se esgotou – pouca gente compra um jornal para ler sobre uma das realidades mais gritantes dos nossos tempos, embora os enjoos da gravidez da miúda que namora com o futebolista e que já pousou na Playboy, a apresentadora que foi despedida, os árbitros da liga e os complexos dos derrotados e é claro o final da novela mantenham o topo da mobilização geral – como os tempos mudam rapidamente e o efeito avestruz ajuda-nos a superar dramas, mesmo os mais próximos de nós.

Se olharmos com uma pitada de entendimento antropológico, já não cumprimos lutos, nem evoluímos em rituais de passagem exigentes e corajosos. Enterramos o que sentimos – e partimos para uma emoção menos exigente para superar as falhas. Filhos de um cobarde menor, que será o mundo, tal como o queremos.

Se recuarmos dois anos – só dois! – e olharmos para os acontecimentos do ano de 2015, isto só para dar um exemplo, veremos que no início do ano nos “preocupávamos” com o Syriza e o Podemos e com quaisquer movimentos de emancipação radicais capazes (?) de mudar o mundo, para deixarmos isso de lado porque, na segunda fase do ano, a questão “humanitária” dos refugiados era mais rentável como moeda de troca jornalística. A chacina de Paris, em novembro do mesmo ano, deixaria de lado gregos e espanhóis e refugiados… e as compras de natal seriam a prioridade já no fim do ano, provocando um eclipse a tudo o que as antecedera.

Olhem para os jornais de hoje. Onde está a Catalunha? Façam o jogo, como as crianças e os adultos o faziam há anos com aquele boneco engraçado de camisola às riscas, óculos grandes, cabelos despenteados e gorro na cabeça. Troquem-no pelos catalães. Descobrem-nos nas notícias de hoje? Morreram todos? Como a crise na Grécia ou o resgaste aos bancos cipriotas e portuguesas que tanto enriqueceram os negociantes do norte europeu aqui há tempos.

O desinteresse pelo braço de ferro entre os homenzinhos dos penteados ridículos – o americano e o coreano – instalou-se no “grande público”, designação cheia de falsidades, mas que se usa para equivaler à grande massa de consumidores que consome o lixo mediático, negando a informação que lhe podia ser útil, trocando-a pelos aliviadores momentos de ócio que outro tipo de órgão de comunicação tão bem constroem. Sabemos que ambos estão  aterrorizados e que há até entre eles uma atração sentimental – sexual? – muito intensa. Putin, que há tempos declarou que o arsenal nuclear da Coreia data de 2001, tenta ser mediador – e ganhar lucros preciosos com a mediação.

Enquanto isto, países como a Índia exibem orgulhosamente o seu míssil de longo alcance, cuja criação terá custado uma verba que diminuiria em larga escala a miséria em muitos pontos do país. Mas o mundo está mais interessado noutras “guerras”. As mais capazes de confortar os perdedores que todos somos.

Por opção do autor, este artigo respeita o AO90

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