Ao promover a violência, o presidente da República reproduz o comportamento que vem das Capitanias Hereditárias.
Como se não bastasse a barbárie do “pacote anticrime” do ministro Sérgio Moro, da Justiça e Segurança Pública, uma verdadeira licença para matar, agora o presidente Jair Bolsonaro anuncia sua intenção de legalizar matanças no campo. Ele disse que vai enviar ao Congresso Nacional um Projeto de Lei que isenta de punição o ruralista que atirar contra “invasores de terras”, para “ajudar a combater a violência no campo”. “A propriedade privada é sagrada e ponto final”, afirmou.
Esse conceito de propriedade é um bom ponto de partida para se entender a ideologia que move atitudes tresloucadas como essa de Bolsonaro. As liberdades políticas conforme enunciadas na doutrina francesa dos Direitos Humanos, de 1789, constituem uma hierarquia de direitos. Há muitos outros direitos associados ao da propriedade. Ou seja: alguém só pode defender o direito à propriedade se possuir propriedade. Conclui-se que sem a sua democratização esse direito se torna vazio e faccioso.
Cada um dos outros direitos não deve ser compreendido como subserviente ao direito à propriedade. Um exemplo é o Artigo 184 da Constituição do Brasil determinando que a União desapropriará, por interesse público, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não cumpra sua função social. A afronta a essa premissa é uma abdicação da civilização e um jogo contra as regras democráticas, uma manifestação explícita de opção pela barbárie.
Dívida social
A lei por aqui sempre esteve a serviço de quem detém o poder econômico. O Brasil é ainda o país da tortura medieval e dos assassinatos impunes para quem não tem onde se socorrer. Como resultado, está disseminada pela sociedade a noção de que a lei não é igual para todos, de que a Justiça não é justa. Esse comportamento explica por que o Brasil é um país com um vergonhoso histórico de sangue inocente derramado no campo.
Essa violência está associada à dívida social que o país acumulou com o seu povo, sequela da escravidão e de outras modalidades de servidão adotadas nas Capitanias Hereditárias pelos donatários de dom João I, mantidas por gerações de sucessores. São os mesmos ideais desde que o Tratado de Tordesilhas, de 1494, reconheceu a posse da coroa portuguesa sobre larga porção da América recém-descoberta, com seus direitos reconhecidos pela vizinha e poderosa Castela.
A maior obra do El-Rei dom Manuel foi realizada três décadas depois pelo filho João, que repartiu todas as terras que lhe couberam na partilha do Ocidente entre súditos fiéis. Por esse plano, a metrópole doou 3 milhões de quilômetros quadrados a quinze particulares e forjou um país de relações sociais complexas. Por extensão, o que foi incorporado a oeste do meridiano primevo também foi registrado em nome de particulares, numa operação de grilagem sem paralelo.
Imigração forçada
A imensa maioria do solo brasileiro tem dono desde o descobrimento — ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, onde o Estado detém 60% das terras próprias para agricultura e as aluga em contratos de longo prazo. E isso traduz uma realidade contemporânea de tremendas injustiças no Brasil. Apesar da modernização tecnológica, ainda é muito presente nas relações sociais a prática do senhor-de-engenho, personagem inscrito na memória nacional pelas gravuras de Jean Baptiste Debret e pelas páginas de José Lins do Rego.
Prevalece a ideia dos escravistas, que resolveram o problema da falta de trabalhadores promovendo uma imigração forçada como mão-de-obra barata. Somente alguns trabalhadores puderam ter a própria terra, mas bem longe de onde o país estava estabelecido — primeiro no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, depois desbravando matas no norte, noroeste e oeste do Paraná. A abolição da escravatura não eliminou a estrutura oligárquica. Os coronéis ainda hoje estão representados em todas as esferas da política nacional e seus jagunços continuam atirando a esmo em trabalhadores que lutam por um pedaço de chão.
Nos anos 1970 e 1980, a ditadura militar empurrou muitas vítimas da concentração de terra para a Amazônia. Muitos dos que foram para lá acabaram constatando logo que aquele solo não se presta à agricultura e passaram a sobreviver do extrativismo predatório da floresta, derrubando árvores milenares para garantir pequenas plantações ou ganhando uma mixaria para jogar mercúrio no rio atrás de minerais preciosos. Se juntaram aos trabalhadores locais, gente paupérrima que profana a floresta para ter o que comer.
Exercício aritmético
A questão nacional e a questão agrária estão intimamente relacionadas — há entre elas uma relação constante de causa e efeito. O latifúndio e o grande capital sempre andaram de mãos dadas na história da República. E não é difícil observar que da Independência aos nossos dias não se operou transformação substancial nos quadros político e social no Brasil. Por vários motivos peculiares ao desenvolvimento histórico brasileiro, a posse da terra ainda é fator determinante para a existência de relações pré-capitalistas no campo.
A barbárie proposta por Bolsonaro reproduz a ideologia desse setor do país de costas para o povo, um clube privado que se imagina mais capaz, mais limpo, gente melhor do que os seres considerados primitivos por serem descendentes de negros e índios. Esse pensamento ficou bem demonstrado quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) divulgou o estudo “Estatísticas do século XX”. O jornal O Estado de S. Paulo publicou em manchete: “O Brasil no século XX: um país 100 vezes mais rico”.
Era mais um engodo, facilmente desmascarado por um elementar exercício aritmético, que explica por que o Brasil é um país tão desigual e opressor. O Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, de fato, de 1901 a 2000, cresceu 100 vezes. Mas a população também cresceu 9,45 vezes, e a parcela do PIB a que cada brasileiro teoricamente tem direito aumentou 11,2 vezes. Na melhor das hipóteses, os brasileiros ficaram 11 vezes menos pobres.
Sustento no campo
Com essa estrutura social historicamente separada por dois extremos, chega-se facilmente à conclusão de que quem de fato enriqueceu foi uma elite minúscula, que, por meio de seu imenso poder político, conseguiu defender sua posse quase total do bolo nacional. Esse setor nunca aceitou de bom grado qualquer iniciativa capaz de modernizar as relações sociais, um comportamento bem visível na atualidades com as ideias de “reformas” trabalhista e previdenciária.
São dados que explicam por que as organizações populares que lutam pela democratização da posse da terra são alvos de bestialidades como essa anunciada por Bolsonaro. A proposta é de acrescentar balas aos impropérios e insultos, levar à prática a campanha de criminalização dos movimentos sociais. É a resposta da ideologia das Capitanias Hereditárias às organizações que lutam pela democracia no campo, que conseguiram firmar sua ideia entre as prioridades nacionais, mostrando a razão dos brasileiros que buscam o seu sustento no campo.
por Osvaldo Bertolino | Texto original em português do Brasil
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