Ernest Hemingway (Oak Park, Illinois, 21/07/1899) é até hoje um dos mais lidos romancistas norte-americanos em todo o mundo, suas obras estão diretamente relacionadas a três grandes eventos que moldaram o século 20: as Primeira e Segunda Guerra Mundiais e a Guerra Civil Espanhola – e ao final da vida se veria ainda em meio à Revolução Cubana, que estourou literalmente às cercas de seu quintal.
O projeto literário de Hemingway é explícito desde seus primeiros contos, em que a radiografia de sua geração de escritores, a chamada Geração Perdida, egressa da Primeira Guerra Mundial, é feita sem glamour, de forma direta, objetiva e crua. Porém, já nesses contos, dos quais saltará para o desafio do grande romance americano, a matéria autobiográfica compõe a massa de fatos e sentimentos dos quais o autor extrairá seu estilo.
Ocorre que para Hemingway o cotidiano por si não oferecia atrativos, daí a sua busca pelas emoções nascidas dos eventos de escala histórica e dos que revelavam o extraordinário, encoberto por sob a camada enganadora de tinta da vida ordinária de motoristas de ambulâncias, garçons, enfermeiras, camareiras… Noutras palavras: por sob cada trabalhador mora um herói em potencial – que sua literatura procura desvendar.
No conto A Capital do Mundo, ambientado numa Madri à beira da guerra civil, um modesto garçom sonha tornar-se toureiro. Na ausência de uma arena e de touro reais, seu colega de turno, já madrugada instaurada numa cozinha de pensão meio à penumbra, improvisará facas nos pés de uma cadeira e o atacará o mais realisticamente possível, para que ele apresente suas habilidades de drible, um guardanapo de mesas fazendo-lhe as vezes de lenço vermelho.
Paco morrerá nessa noite não vítima da chifrada de um miúra, mas ao ser atravessado por uma faca amarrada aos pés de uma cadeira, enquanto suas irmãs camareiras assistem a um filme de Greta Garbo, o qual o narrador considerará um passo em falso na carreira da atriz.
Adeus às Armas
Em Adeus às Armas, romance de 1929, os heróis não são generais ou políticos, mas um motorista de ambulância e uma voluntária do serviço hospitalar. Elaborado a partir de sua própria experiência na Primeira Guerra, quando engajou-se na Cruz Vermelha após ser reprovado no alistamento militar, o livro retrata o amor desesperado de dois jovens em meio à carnificina na fronteira entre Itália e Áustria. Ali o amor precisa ser realizado com urgência, pois a morte é o pano de fundo de todas as aspirações. O heroísmo não está nas trincheiras, mas na capacidade de amar em meio aos bombardeios que semeiam pedaços de corpos por todos os lados e às doenças que fazem o trabalho que as balas e morteiros não fizeram:
No início do inverno, vieram as chuvas ininterruptas, e com as chuvas chegou o cólera. Felizmente a epidemia foi combatida a tempo, e apenas sete mil soldados morreram vítimas dela.”
Adeus às Armas, apenas três anos após sua publicação, foi às telas do cinema, estreando em 1932, tornando-se instantaneamente um clássico em preto e branco, com Gary Cooper no papel de alter-ego de Hemingway. O filme foi indicado ao Oscar em quatro categorias: Melhor Filme, Direção de Arte, Fotografia e Gravação de Som, vencendo nas duas últimas. O impacto do romance foi tal que em 1957 ganha nas telas do cinema sua versão colorida, agora com Rock Hudson no papel do motorista de ambulância e não menos de que Vittorio de Sica como ator coadjuvante, com indicação ao Oscar na categoria.
Hemingway e os grandes acontecimentos do mundo
Os grandes acontecimentos do mundo foram a obsessão de Hemingway, por isso ele buscou sempre de alguma forma se fazer de corpo presente neles, seja como motorista de ambulância na Primeira Guerra, seja como repórter engajado nos esforços das Brigadas Internacionais na Guerra Civil Espanhola, seja como correspondente ao final da Segunda Guerra. Para ele há obrigatoriedade de se viver as experiências para se falar com honestidade delas.
Em Por Quem Os Sinos Dobram (1940), Robert Jordan, um jovem professor de espanhol norte-americano na Espanha da Guerra Civil, se envolve no conflito ao lado dos republicados. A ele cabe explodir uma ponte. Nos dias que antecedem à missão, ele constata a carnificina, acentuada pelo apoio dos fascistas italianos e dos nazistas alemães aos nacionalistas de Franco, reflete sobre os elos que ligam os republicanos à sua causa e se apaixona pela cigana Maria. O romance ganhará adaptação cinematográfica em 1943, com Gary Cooper no papel de Jordan e Ingrid Bergman, indicada para o Oscar, no papel de Maria.
A obra de Hemingway abasteceu com abundância Hollywood. Seu conto As Neves do Kilimanjaro (1936), estreou no cinema em 1952, com Gregory Peck, Susan Hayward e Ava Gardner, que encheram as salas de cinema pelo mundo. O filme foi indicado ao Oscar de Melhor Direção de Arte e Fotografia. O conto retrata um safári com maus resultados para o protagonista, Harry Street, um escritor experiente que se fere num arbusto e tem a perna gangrenada. Preso a seu catre, ele revive, durante delírios da febre, suas aventuras pelo mundo, seus amores e seus sonhos juvenis – à sombra da morte, prenunciada na forma de abutres e hienas que rondam o acampamento.
Quando O Velho e o Mar foi publicado, muitos críticos consideravam que Hemingway, isolado na ilha de Cuba, tida como a sepultura de sua criatividade, não tinha mais nada a oferecer. A seu editor, o autor enviara, em 1952, os originais desse conto com um bilhete: “Eu sei que isso é o melhor que posso escrever na minha vida toda”. Sucede que esse livro, considerado hoje sua obra prima, ambientado na ensolarada Cuba, rendeu-lhe o prêmio Nobel – na verdade, foi o pretexto que faltava para a Academia Sueca premiá-lo pelo conjunto da obra.
E seguindo a mesma vocação de seus melhores textos, O Velho e o Mar rendeu outro clássico do cinema, em 1958. No papel do velho pescador que enfrenta com suas últimas forças a fúria da natureza na forma de um verdadeiro monstro marinho, não menos que Spencer Tracy, indicado para o Oscar como melhor ator e vencedor do Globo de Ouro na mesma categoria (o filme venceria o Oscar de 1959 na categoria Melhor Trilha Sonora).
Para abastecer sua literatura, Hemingway se atirou à vida e se envolveu em conflitos de toda sorte, pessoais e coletivos, porém a Revolução Cubana lhe chegou sem que ele a buscasse. Embora simpático aos jovens guerrilheiros que derrubariam a ditadura de Batista, já bastante abatido, diabético, sofrendo de depressão aguda e lapsos de memória, o autor abandona a ilha para terminar seus dias no norte dos EUA, em meios às Montanhas Rochosas (Ketchum, Idaho, 2 de julho de 1961).
por Jeosafá Fernandez Gonçalves, Escritor. É doutor em Letras e pesquisador colaborador do Departamento de História da USP | Texto original em português do Brasil
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